Cláudio Lacerda
Cirurgião. Professor da UPE e da UNINASSAU.
cmlacerda1@hotmail.com
Publicação: 05/07/2015 03:00
Transplante de órgãos no Brasil é coisa séria, igualitária e ética. Todavia, a lei que o disciplina é imperfeita e, por isso, injustiças podem ser cometidas.
Em março de 2003, internamos uma criança de sete anos, com hemorragia digestiva. Portadora de cirrose avançada, já em lista para transplante, a garotinha pobre, do interior, havia rompido as varizes de esôfago. Tentamos estancar o sangramento por endoscopia, sem êxito, e fizemos uma cirurgia para conter a hemorragia. Essa operação, eficaz para isso, não trata a cirrose, que continua se agravando, podendo determinar o óbito a qualquer momento.
Na noite daquele mesmo dia, por coincidência, ou conspiração divina, quem sabe, surge um doador compatível. Mas não podíamos transplantá-la. Seria uma ilegalidade prevista no código penal, já que ela era apenas a trigésima da lista.
Frustrado com a situação, mas resignado, mandei chamar o primeiro paciente da lista, um homem de sessenta anos, e iniciamos o transplante, em sala contigua à UTI onde estava a menina. Às duas horas da manhã, abortamos o transplante, pois, além da cirrose, o paciente apresentava um câncer avançado. Ocorre que o fígado do doador já estava pronto e corríamos contra o tempo se quiséssemos utilizá-lo para o próximo paciente.
Cresceu a vontade de reduzir aquele órgão e usar para a menina, que estava ali, pronta para a operação que lhe oferecia chance de cura definitiva. Era o que a lei de Deus nos impulsionava a fazer, como se Ele estivesse conspirando por ela, enquanto a dos homens nos impedia. Decidi cumprir as regras, mas, confesso, blefando um pouco. Telefonei para a Central de Transplantes, que disciplina a destinação dos órgãos. Quem estava de plantão era alguém inexperiente. Ainda bem! Contei o que acontecera e pedi para mandar buscar o fígado já que não havia tempo para chamar o próximo da lista. Ela me perguntou o que faria com aquele órgão, àquela hora. Respondi que não sabia o que ela faria, mas sabia o que eu faria se ela autorizasse: implantaria numa criança grave, que estava pronta para a cirurgia, a vinte metros da sala de operações. Ela respondeu: “tudo bem”.
Era tudo o que eu queria ouvir, sabendo que aquelas ligações eram gravadas e que, naquele momento, a funcionária representava a Central e sua palavra tinha, portanto, fé de ofício. Tocamos o transplante da garota com o cuidado de manter o meu celular desligado, pois tinha medo de uma contraordem. A intervenção transcorreu bem, assim como o pós-operatório. Na semana seguinte, em nossa reunião clínica, discutimos o caso com ênfase nas questões éticas e legais. A psicóloga da equipe, dedicada e séria, ponderou que não concordava com o que eu tinha feito. Argumentou, com razão, que o princípio básico na construção de uma nação era o respeito às leis, mesmo quando as suas imperfeições possam levar a injustiças.
Convicto de que sempre que a lei dos homens se confrontar com a lei de Deus, farei a opção pela de Deus, coloquei na reunião a situação descrita a seguir: “Imaginem vocês que estivéssemos vivendo há 200 anos, na época da escravidão. Um dia, bate à sua porta um escravo fugido, faminto e surrado. Você deixa-o entrar, tomar um banho e fazer uma refeição. Pois bem, você estaria cometendo um crime considerado grave pelas leis de então. Chamava-se ‘acoitar escravo fugido’. Então? Alguém aqui nesta sala faria diferente? Alguém aqui bateria a porta na cara daquele ser humano, para não desrespeitar a lei?” Fez-se silêncio, até que terminei meus argumentos, e a reunião, com as seguintes palavras: “Ainda bem”.
Em março de 2003, internamos uma criança de sete anos, com hemorragia digestiva. Portadora de cirrose avançada, já em lista para transplante, a garotinha pobre, do interior, havia rompido as varizes de esôfago. Tentamos estancar o sangramento por endoscopia, sem êxito, e fizemos uma cirurgia para conter a hemorragia. Essa operação, eficaz para isso, não trata a cirrose, que continua se agravando, podendo determinar o óbito a qualquer momento.
Na noite daquele mesmo dia, por coincidência, ou conspiração divina, quem sabe, surge um doador compatível. Mas não podíamos transplantá-la. Seria uma ilegalidade prevista no código penal, já que ela era apenas a trigésima da lista.
Frustrado com a situação, mas resignado, mandei chamar o primeiro paciente da lista, um homem de sessenta anos, e iniciamos o transplante, em sala contigua à UTI onde estava a menina. Às duas horas da manhã, abortamos o transplante, pois, além da cirrose, o paciente apresentava um câncer avançado. Ocorre que o fígado do doador já estava pronto e corríamos contra o tempo se quiséssemos utilizá-lo para o próximo paciente.
Cresceu a vontade de reduzir aquele órgão e usar para a menina, que estava ali, pronta para a operação que lhe oferecia chance de cura definitiva. Era o que a lei de Deus nos impulsionava a fazer, como se Ele estivesse conspirando por ela, enquanto a dos homens nos impedia. Decidi cumprir as regras, mas, confesso, blefando um pouco. Telefonei para a Central de Transplantes, que disciplina a destinação dos órgãos. Quem estava de plantão era alguém inexperiente. Ainda bem! Contei o que acontecera e pedi para mandar buscar o fígado já que não havia tempo para chamar o próximo da lista. Ela me perguntou o que faria com aquele órgão, àquela hora. Respondi que não sabia o que ela faria, mas sabia o que eu faria se ela autorizasse: implantaria numa criança grave, que estava pronta para a cirurgia, a vinte metros da sala de operações. Ela respondeu: “tudo bem”.
Era tudo o que eu queria ouvir, sabendo que aquelas ligações eram gravadas e que, naquele momento, a funcionária representava a Central e sua palavra tinha, portanto, fé de ofício. Tocamos o transplante da garota com o cuidado de manter o meu celular desligado, pois tinha medo de uma contraordem. A intervenção transcorreu bem, assim como o pós-operatório. Na semana seguinte, em nossa reunião clínica, discutimos o caso com ênfase nas questões éticas e legais. A psicóloga da equipe, dedicada e séria, ponderou que não concordava com o que eu tinha feito. Argumentou, com razão, que o princípio básico na construção de uma nação era o respeito às leis, mesmo quando as suas imperfeições possam levar a injustiças.
Convicto de que sempre que a lei dos homens se confrontar com a lei de Deus, farei a opção pela de Deus, coloquei na reunião a situação descrita a seguir: “Imaginem vocês que estivéssemos vivendo há 200 anos, na época da escravidão. Um dia, bate à sua porta um escravo fugido, faminto e surrado. Você deixa-o entrar, tomar um banho e fazer uma refeição. Pois bem, você estaria cometendo um crime considerado grave pelas leis de então. Chamava-se ‘acoitar escravo fugido’. Então? Alguém aqui nesta sala faria diferente? Alguém aqui bateria a porta na cara daquele ser humano, para não desrespeitar a lei?” Fez-se silêncio, até que terminei meus argumentos, e a reunião, com as seguintes palavras: “Ainda bem”.