O que nos dizem os tambores que já se ouvem nas estepes africanas?

Márcia Alcoforado
Professora associada do Departamento de Economia da UFPE e dos programas de pós-graduação PIMES/PPGEC.

Publicação: 20/10/2017 03:00

Neste início de outubro participei da 14ª Conferência em Planejamento e Gestão de Bacias Hidrográficas do IWA (International Water Association) realizada no Parque Nacional Kruger, na África do Sul. O parque é a maior área protegida de fauna bravia do país e cobre mais de 2 milhões de hectares. Fomos acomodados no campi denominado Skukuza, que em uma das línguas locais significa “aquele que coloca tudo de cabeça para baixo”. Era assim conhecido o escocês Stevenson-Hamilton, responsável pela consolidação da reserva, ainda em 1926, contra poderosos interesses. A maior parte do interior do continente, incluindo o Kruger, era um ambiente tropical úmido dominado por densas florestas. Um esfriamento global, datado de milhões de anos atrás, foi responsável pela transformação da maior parte dessas florestas nas chamadas savanas, caracterizadas por gramas, arbustos e árvores esparsas. Este bioma possibilitou o surgimento e a evolução da nossa espécie e é lar dos maiores mamíferos terrestres. Na verdade, a maior parte de todos os animais que lá estão hoje, nós inclusive, foram os que melhor se adaptaram a este novo ambiente de aridez. Difícil escapar de reflexões sobre a condição humana quando colocamos os pés sobre o solo dos nossos primeiros ancestrais e nos encontramos diante do mesmo duro cenário. A psicologia analítica de Jung considera que, no homem moderno, todo o material inconsciente coletivo que herdou de seus ancestrais, apesar de reprimido, está em estado relativamente ativo. Para o homem primitivo que viveu nessas savanas, o mundo espiritual era tão real quanto o físico. A existência se dava sobre uma estrutura mágica e instintiva e incorporava facilmente a dualidade da vida A mudança na visão de mundo ocorre a partir da Idade Moderna onde passa-se a valorizar o lado material em detrimento do espiritual. Enquanto que necessária ao nosso desenvolvimento, essa visão cria uma consciência racional unilateral, ignorando uma parte importante da nossa psiquê, que felizmente ainda pode ser invocada. O evento do IWA selecionou tópicos de gestão de recursos hídricos, com um foco em mudanças climáticas. No coquetel de abertura poucas palavras foram ditas, preferiu-se a dança. Tambores e vozes se ouviram e jovens africanos nos envolveram em danças ancestrais. Não por acaso. Do ponto de vista psicológico, a dança é uma expressão da totalidade do ser e busca integrar os opostos reunindo polaridades e evocando a dimensão do paradoxal e indivisível. Ainda sem crer na casualidade assisti, na abertura, ao conferencista Aaron Wolf (Oregon State University) sugerir a inclusão da espiritualidade ao lado da racionalidade para a resolução de conflitos nas difíceis questões das águas compartilhadas. A partir daí, foi com naturalidade que se espraiou o espírito Skukuza: Conceitos estabelecidos como o uso da escala de bacias para a gestão foram questionados. A Reconciliação entre os requerimentos de água e as ofertas existentes, diante da mudança do clima, ao invés da ampliação das disponibilidades é que apareceu como estratégica. Numa das últimas sessões técnicas, ao meu lado na sala Ingwe (Leopardo), a apoteose foi ouvir a jovem sul-africana Claire Pengelly da Agência GreenCape. Com a mesma elegância e impetuosidade de um destes felinos, associou os volumes de água retirados com o potencial de empregos criados e me fez ver que a integração entre os planos de desenvolvimento econômico e os planos de gestão de águas já estão a caminho em importantes bacias do seu país, numa parceria entre a agência e a Univ. do Cabo (UCT). Para as sociedades primitivas, a sede da inteligência e da intuição era o coração, e não a cabeça, o que assinalava a importância da emoção no processo de conhecimento de si e do mundo. Recente estudo da Universidade do Arizona concluiu que há 70 mil anos foi uma outra mudança climática, o motivo da maciça migração dos seres humanos a partir da África em direção a Eurásia. Resta-nos, diante da mudança que já vivemos, trilhar o caminho contrário, reconhecendo nossas origens, abrindo o nosso coração e escutando os tambores que já se ouvem nas belíssimas estepes africanas.