Fanuel Melo Paes Barreto
Professor de Língua Portuguesa e Linguística/Unicap
Publicação: 25/11/2017 03:00
A expressão “língua materna” é de uso corrente nos contextos de estudo e ensino da linguagem; designa o primeiro idioma que o indivíduo adquire na infância. O processo de aquisição e a proficiência dos usuários são áreas em que os psicolinguistas identificam uma diferença qualitativa entre a primeira língua adquirida e qualquer outra que se aprenda depois, embora discordem em suas explicações. Os dois casos, a seguir, surpreendente que pareça sua escolha, põem em foco precisamente o diferencial qualitativo da proficiência na língua materna.
O primeiro envolve a figura de Albert Schweitzer (1875-1965), Prêmio Nobel da Paz de 1952, médico humanitário, teólogo e musicólogo, nascido na Alsácia. A região, desde sempre palco de disputas entre franceses e alemães, fora, à época, anexada ao Império Germânico, do qual se desmembraria após a I Guerra Mundial, reincorporando-se ao território francês. Esse curso pendular de sua história política fez dos alsacianos uma gente pronta a colher o melhor dos dois mundos, segundo um ditado, comendo tanto quanto os alemães e tão bem como os franceses. Em 1905, Schweitzer publicou, em francês, um estudo sobre o compositor alemão J. S. Bach. Relembrando, anos depois, as dificuldades que enfrentara, confessou ele ter sido a tarefa “um esforço”. Apesar de falar, desde criança, o francês e o alemão, reconhecia: “o alemão, entretanto, é minha língua materna”. Mesmo oriundo de uma região cuja lealdade nacional e linguística oscilava entre dois povos, Schweitzer julgava ser “mero autoengano, se alguém acredita ter duas línguas maternas”. E acrescentava: “ele pode pensar que tem igual domínio das duas”, mas somente em uma delas é “realmente livre e criativo”.
O segundo caso traz como personagem Gilberto Freyre (1900-1987). O sociólogo e escritor pernambucano aprendera a língua inglesa ainda no Recife, no contexto de uma “educação norte-americana nos trópicos”, segundo a descrição de seus biógrafos Enrique Larreta e Guillermo Giucci. Durante sua estada na Universidade de Baylor, no Texas, Freyre recebeu forte influência do professor de literatura A. J. Armstrong, que insistia para que ele abandonasse sua língua “clandestina” e adotasse o inglês como língua literária, tornando-se um escritor “universal”. Lúcido, o aluno comentaria em suas anotações: “posso andar em inglês, porém não dançar na ponta dos pés”. E para que desistisse da aventura, além do reconhecimento de seus limites, segundo Maria Lúcia Pallares-Burke, outra biógrafa de Freyre, é possível que tenha contribuído o conselho que um de seus autores preferidos, Lafcadio Hearn, dava a alunos da Universidade Imperial, em Tóquio: “nenhum de vocês pode ter a esperança de ... mover o coração das pessoas em uma língua que não a sua”. Anos mais tarde, Freyre celebraria o fato de que os “estudos universitários feitos no estrangeiro não o afastaram ... dessa língua materna” que ele, desde muito jovem, “buscou tornar, a seu modo, mais plástica, mais fluida, mais flexível”.
Em livro intitulado Latin: story of a world language (2013), o latinista alemão Jürgen Leonhardt sugere que a concepção de língua materna como a única que “vem do coração”, “inspira a poesia”, “está acessível em toda situação” e “é completamente desenvolvida” tem progressivamente se mostrado um caminho “peculiarmente europeu” tomado no contexto nacionalista dos séculos XIX e XX. Segundo ele, “desde que o latim deixou de ser a língua comum da Europa, poucas sociedades têm sido tão consistentemente monolíngues ... como os estados nacionais europeus”. Porém, ainda conforme o autor, há sinais de que, em termos linguísticos, a Europa esteja retornando ao seu “eu pré-moderno”, caracterizado por uma situação em que cada região tem a sua própria língua, sendo a comunicação suprarregional garantida por uma língua comum – o latim no passado, o inglês no presente. Tal retorno se explicaria pela crescente inviabilidade da ideia de estado nacional. Seria, então, a língua materna um mero construto ideológico a serviço de projetos hegemônicos? Ou estaria o conceito de língua materna do latinista confusamente mesclado à noção de idioma nacional? Como explicar a evidência psicolinguística? Ou a intuição dos usuários nativos exemplificada nos casos aqui apresentados?
O primeiro envolve a figura de Albert Schweitzer (1875-1965), Prêmio Nobel da Paz de 1952, médico humanitário, teólogo e musicólogo, nascido na Alsácia. A região, desde sempre palco de disputas entre franceses e alemães, fora, à época, anexada ao Império Germânico, do qual se desmembraria após a I Guerra Mundial, reincorporando-se ao território francês. Esse curso pendular de sua história política fez dos alsacianos uma gente pronta a colher o melhor dos dois mundos, segundo um ditado, comendo tanto quanto os alemães e tão bem como os franceses. Em 1905, Schweitzer publicou, em francês, um estudo sobre o compositor alemão J. S. Bach. Relembrando, anos depois, as dificuldades que enfrentara, confessou ele ter sido a tarefa “um esforço”. Apesar de falar, desde criança, o francês e o alemão, reconhecia: “o alemão, entretanto, é minha língua materna”. Mesmo oriundo de uma região cuja lealdade nacional e linguística oscilava entre dois povos, Schweitzer julgava ser “mero autoengano, se alguém acredita ter duas línguas maternas”. E acrescentava: “ele pode pensar que tem igual domínio das duas”, mas somente em uma delas é “realmente livre e criativo”.
O segundo caso traz como personagem Gilberto Freyre (1900-1987). O sociólogo e escritor pernambucano aprendera a língua inglesa ainda no Recife, no contexto de uma “educação norte-americana nos trópicos”, segundo a descrição de seus biógrafos Enrique Larreta e Guillermo Giucci. Durante sua estada na Universidade de Baylor, no Texas, Freyre recebeu forte influência do professor de literatura A. J. Armstrong, que insistia para que ele abandonasse sua língua “clandestina” e adotasse o inglês como língua literária, tornando-se um escritor “universal”. Lúcido, o aluno comentaria em suas anotações: “posso andar em inglês, porém não dançar na ponta dos pés”. E para que desistisse da aventura, além do reconhecimento de seus limites, segundo Maria Lúcia Pallares-Burke, outra biógrafa de Freyre, é possível que tenha contribuído o conselho que um de seus autores preferidos, Lafcadio Hearn, dava a alunos da Universidade Imperial, em Tóquio: “nenhum de vocês pode ter a esperança de ... mover o coração das pessoas em uma língua que não a sua”. Anos mais tarde, Freyre celebraria o fato de que os “estudos universitários feitos no estrangeiro não o afastaram ... dessa língua materna” que ele, desde muito jovem, “buscou tornar, a seu modo, mais plástica, mais fluida, mais flexível”.
Em livro intitulado Latin: story of a world language (2013), o latinista alemão Jürgen Leonhardt sugere que a concepção de língua materna como a única que “vem do coração”, “inspira a poesia”, “está acessível em toda situação” e “é completamente desenvolvida” tem progressivamente se mostrado um caminho “peculiarmente europeu” tomado no contexto nacionalista dos séculos XIX e XX. Segundo ele, “desde que o latim deixou de ser a língua comum da Europa, poucas sociedades têm sido tão consistentemente monolíngues ... como os estados nacionais europeus”. Porém, ainda conforme o autor, há sinais de que, em termos linguísticos, a Europa esteja retornando ao seu “eu pré-moderno”, caracterizado por uma situação em que cada região tem a sua própria língua, sendo a comunicação suprarregional garantida por uma língua comum – o latim no passado, o inglês no presente. Tal retorno se explicaria pela crescente inviabilidade da ideia de estado nacional. Seria, então, a língua materna um mero construto ideológico a serviço de projetos hegemônicos? Ou estaria o conceito de língua materna do latinista confusamente mesclado à noção de idioma nacional? Como explicar a evidência psicolinguística? Ou a intuição dos usuários nativos exemplificada nos casos aqui apresentados?