Um documentário-poema de amor ao Recife

Marcelo Neves
Um recifense do Rosarinho

Publicação: 07/09/2023 03:00

Emigrei do Recife há cerca de três décadas por injunções e desejos profissionais. Sou do Rosarinho, onde morei por grande parte da minha vida desde o meu nascimento, em 1957. Bairro do norte da cidade, um tanto longe, na geografia urbana, do Setúbal de Kléber Mendonça Filho, no extremo sul da cidade. Quando nasci, morávamos na Rua Belmiro Correia. Depois, mudamos para a Praça Santos Dumont, onde meu pai construiu uma casa para 12 filhos. Ao redor, favelas, mas não me lembro de crime violento até o meu tempo de adulto, quando deixei de morar no bairro. Interagíamos, de classe média, com os meninos da favela sem nenhum problema além dos típicos entre crianças e jovens.

Quando adolescente, na passagem dos 60 para os 70, ia para o cinema com meu irmão Carlos, amigas e amigos, ou com os meus primos Fred e Miltinho e a prima Celinha, de ônibus, nos fins de semana, quase uma compulsão aos domingos. Tomávamos as linhas de ônibus elétrico Macaxeira, Córrego do Euclides e Vasco da Gama, que vinham do extremo norte da cidade. Íamos para filmes no Art Palacio, Trianon, Moderno e São Luís.

Com 14 anos, assisti a 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, na Sessão Bossa Jovem do Cinema São Luís, sempre nos sábados às 10h da manhã. Lembro-me de ouvir de um jovem mais velho, sentado na cadeira detrás da minha, quando da cena em que o astronauta, no espaço sideral, tinha uma conversa por vídeo com sua filha, na Terra, o seguinte comentário: “Nessa época, ainda vai haver fome na Terra” – essa frase acompanha-me até hoje.

Ouvi falar de Kléber Mendonça Filho no início da década de 1990. Foi um conhecido meu, amigo dele, que mencionou o potencial artístico-cinematográfico dele. Kléber ainda estava no início de sua brilhante carreira. Seguindo seus passos, assisti a O Som ao Redor e fui tomado pelo encantamento. Depois, Aquarius, o deslumbre. Em seguida, Bacurau, em codireção com o cineasta Juliano Dornelles. Então, a fascinação.

No sábado da semana passada, fui assistir, no Cine Cultura Liberty Mall em Brasília, a Retratos Fantasmas, de Kléber. Além do encantamento, deslumbre e fascinação, veio a apoteose. É um documentário-poema de amor ao Recife, narrado (ou recitado?) pelo próprio diretor com belas e sutis imagens e trilha sonora impecável. A narração, que pode parecer simplória para alguns no início, descortina uma densa expressividade artística, incomum, em uma linguagem esteticamente despojada. A autenticidade como pretensão de validade na expressão subjetiva da arte pervade todo o filme. Em entrevista, Kléber diz que o sujeito do filme é a própria cidade do Recife. Eu falaria de outra maneira. O diretor e narrador se mistura com a cidade, como que se metamorfoseando nela.

A linguagem despojada da narração e das imagens lembra-me Annie Ernaux (Nobel da literatura em 2022), especialmente O Lugar. A obra inteira de Ernaux é marcada por um despojamento criativo arrebatador. Retratos Fantasmas também me traz à memória o Haruki Murakami de Homens sem Mulheres. A cada palavra simples e direta, seguem-se imagens de beleza que despertam as camadas adormecidas do nosso eu.

Meus olhos marejaram durante o filme. Eu vivi aqueles locais e pessoas que são iluminadas na película. E, confesso, solucei quando entrou a voz de Nelson Ferreira cantando Cabeça Branca, acompanhado pelo seu piano. Na infância, eu ouvia essa canção na casa dos meus pais, amantes do frevo e vizinhos dos clubes carnavalescos Madeira do Rosarinho e Inocentes do Rosarinho. Em deferência a Nelson, Kléber deixou tocar a faixa inteira do disco, de 2m52, o que é raro em trilhas sonoras.

Na saída da sessão, encontrei um colega do Sul. Aproximamo-nos, e ele disse: “Fiquei imaginando o que você estava sentindo durante o filme”. E ressalvou: “Mas o filme é universal”. Sim, o salto artístico do particular ao universal, no que sempre gostava de insistir Ariano, é uma constante na arte: partindo do teatro popular na Alemanha, Goethe leva à universalização de Fausto, assim como partindo das particularidades de sua cidade, Fellini inventa o seu universal Roma. Com base na sua experiência singular com e no Recife, Kléber Mendonça Filho expressa-se genialmente no universal Retratos Fantasmas. Não percam!