A Constituição de 1988 ainda dá conta do Brasil de hoje?

Orlando Morais Neto
Sócio de Paurá Advocacia, especializado em Direito Eleitoral, Mestre e Doutorando em Direito pela UNICAP e pela Universidade de Pisa

Publicação: 10/04/2025 03:00

Em 2025, a Constituição Federal do Brasil completará 37 anos. Promulgada em 1988, no rastro da redemocratização, ela representou um marco de ruptura com o autoritarismo e inaugurou um modelo de Estado fundado nos direitos fundamentais, na separação dos poderes e na dignidade da pessoa humana como valor supremo. Mas, passadas mais de três décadas — e mais de uma centena de emendas —, cresce o debate: será que a Constituição de 1988 ainda dá conta do Brasil de hoje?

Para alguns críticos, a chamada “Constituição Cidadã” se tornou um texto extenso, engessado e excessivamente protetivo. Acusa-se a Carta de conter “direitos demais” e soluções de menos, ampliando a distância entre promessas normativas e realidade social. De fato, direitos sociais como saúde, educação e moradia estão garantidos no papel — mas enfrentam sérias dificuldades de efetivação, sobretudo em regiões periféricas e nos municípios mais pobres. Isso levanta uma questão importante: a culpa é da Constituição ou da forma como o Estado administra (ou negligencia) os recursos públicos?

Por outro lado, a CF/88 tem se mostrado extraordinariamente resiliente. Sua estrutura rígida — que exige quóruns qualificados para emendas — tem funcionado como um anteparo contra retrocessos autoritários, ainda que não os impeça por completo. As chamadas cláusulas pétreas, como os direitos individuais, a separação dos poderes e o voto direto, funcionam como limites constitucionais intransponíveis, impedindo alterações que comprometam o núcleo essencial do pacto democrático.

No entanto, mesmo com esse núcleo protegido, a Constituição brasileira já sofreu mais de 130 emendas, algumas das quais alteraram significativamente o desenho institucional original. A proliferação de PEC’s, muitas vezes propostas por interesses circunstanciais do Executivo ou do Congresso, levanta preocupações sobre o que se tem chamado de “emendismo constitucional” — uma espécie de banalização do poder de reforma. Quando tudo pode ser mudado por emenda, o próprio caráter de estabilidade da Constituição fica em xeque.

Há, ainda, um fenômeno mais sutil, mas igualmente relevante: as chamadas mutações constitucionais. São mudanças de sentido e alcance das normas constitucionais que não decorrem de reformas formais, mas da atuação dos tribunais — especialmente do Supremo Tribunal Federal. É assim que se interpretou o conceito de família para incluir uniões homoafetivas, que se reconheceu o direito à greve para servidores públicos mesmo antes de lei específica, e que se ampliou a noção de igualdade para enfrentar o racismo estrutural. Essas mutações revelam a vitalidade interpretativa da Constituição, mas também geram tensões entre o Judiciário e os demais poderes.

Apesar das críticas e dos desafios, é preciso reconhecer que a Constituição de 1988 tem resistido a fortes tempestades institucionais. Tem servido de escudo contra arroubos autoritários, de plataforma para a afirmação de novos direitos e de referência normativa para as lutas sociais e democráticas.  

Mais do que perguntar se a Constituição ainda serve ao Brasil atual, talvez devêssemos perguntar se o Brasil tem feito o necessário para ser fiel à sua Lei Maior. Em um país ainda marcado por desigualdades profundas, discursos antidemocráticos e políticas públicas instáveis, o problema pode não estar na Carta Magna em si — mas na falta de compromisso real com os seus fundamentos.