George Cabral
Olindense. Historiador. Professor da UFPE
Publicação: 26/04/2025 03:00
O Sítio Histórico de Olinda (SHO) foi reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco em dezembro de 1982, após uma grande mobilização de autoridades dos três níveis de governo, de diversos especialistas em distintas áreas do saber e dos moradores locais. Antes, Olinda havia alcançado alguns tombamentos isolados de monumentos (a partir da década de 1930) e o reconhecimento como monumento nacional pela Lei Federal 6.863, de 26/11/1980. Já nesse século 21, o Carnaval de Olinda foi reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial de Pernambuco por meio da Lei Estadual 13.778 de 27/05/2009. Em 2007, o Frevo foi reconhecido pelo Iphan como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e, em 2012, a Unesco gabaritou a expressão pernambucana como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Finalmente, tramita desde maio de 2017, o processo de reconhecimento do Carnaval de Olinda como Patrimônio Cultural Imaterial junto ao Iphan, registro que, para avançar, depende da realização de um inventário cultural. Várias agremiações da cidade foram reconhecidas nos últimos anos como Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, entre elas o Elefante de Olinda, O Homem da Meia-Noite, Cariri Olindense e Pitombeira dos Quatro Cantos. Convém recordar que, em dezembro de 2001, a Câmara Municipal de Olinda aprovou a chamada Lei do Carnaval, que objetiva regulamentar as competências dos gestores municipais e salvaguardar o espírito genuíno das celebrações momescas, erigindo barreiras legais contra abusos de várias espécies.
Fica bastante evidenciado que, quando tratamos do Carnaval do SHO, estamos falando de uma manifestação muito especial, repleta de significados e sentidos historicamente construídos por gerações de olindenses natos ou adotados. Tudo isso em um ambiente peculiar: uma cidade colonial, de ruas estreitas e tortuosas, com monumentos valiosos, uma vegetação exuberante e a vida pulsante que vem de seus moradores e se transforma em troças, afoxés, maracatus, ursos, bois e outras manifestações. No entanto, as situações vividas no SHO têm ido totalmente de encontro ao que se podia esperar de um lugar com tantos reconhecimentos, tão querido e admirado tanto no Brasil, como no exterior.
O Carnaval de 2025 deixou um gosto amargo para os foliões verdadeiramente amantes da cidade e de suas tradições culturais. Ruas, praças e largos do SHO foram tomados por um bizarro acampamento feito de barracas e carroças de ambulantes. Botijões de gás, fogareiros, tachos de óleo fervente, poderosas caixas de som e temerárias instalações elétricas proliferaram da noite para o dia bloqueando portas e janelas de moradores. E quem ousou reclamar muitas vezes foi ameaçado. A circulação de motocicletas, carros, carroças e pasmem, até caminhões pesados, atingiu níveis nunca vistos antes. Os veículos, com ou sem o adesivo de autorização de trânsito, se deslocaram e/ou estacionaram em algumas das mais importantes artérias da folia, provocando um perigoso estrangulamento da circulação da multidão. Foi muito triste ver uma agremiação tradicional, Patrimônio Vivo de Pernambuco, ter que desviar seu cortejo diante da impossibilidade de passar com suas orquestras e alegorias. A rua estava bloqueada por uma aglomeração provocada pelo paredão de som de uma batucada. O risco de uma situação de pânico acabar em tragédia é real (vide o lamentável caso do tiroteio em frente ao palco montado no Carmo). Muita gente acaba aderindo às casas camarotes para ter mais comodidade e tranquilidade, mas cabe a pergunta: as normas de segurança exigidas pelos Bombeiros são respeitadas nestes locais garantindo a integridade física de quem comprou os seus caros ingressos? (Não esqueçamos da tragédia da Boate Kiss, em 2013!). A repetitiva decoração oficial tem sido de uma indigência de fazer dó. Há capas de caderno barato com design mais imaginativo que a decoração da cidade nos Carnavais dos últimos anos. Logo em Olinda, terra de tanta riqueza imagética e com tantos grandes artistas.
As estatísticas superlativas, crescentes a cada Carnaval, são sorridentemente anunciadas, mas não são todas, necessariamente, um bom indicativo quando se trata de Olinda. Primeiro, porque o SHO tem limites de espaço e de estrutura que são inelásticos; segundo, porque não se percebe com transparência quanto dos montantes anunciados efetivamente circula na festa e gera arrecadação para aplicação em benfeitorias; e terceiro, porque é perceptível que de ano a ano os transtornos são maiores. Recordemos que a movimentação de Carnaval nas ladeiras e quintais já se inicia em setembro de cada ano, com “prévias” que trazem todo um rosário de problemas. Para não falar dos famigerados “ensaios” de batucada que aniquilam o direito de descansar dos moradores do SHO nos fins de semana.
A gestão do Carnaval de Olinda, com o devido respeito aos que pensam diferente, tem de estar acima do mero cálculo eleitoreiro e dos interesses puramente mercadológicos. A preciosa e irrepetível simbiose entre moradores mantenedores das expressões culturais e o SHO foi um dos elementos que a Unesco destacou na justificativa da concessão do título de Patrimônio da Humanidade para Olinda. Essa feliz e rara conjunção de povo, patrimônio e festa se vê hoje seriamente ameaçada. A força da “grife” Olinda atrai gente que não respeita a cidade e que quer empurrar um modelo de exploração do Carnaval que nada tem a ver com o SHO, pelo contrário: que violenta seu patrimônio (já cotidianamente muito maltratado na última década), humilha sua herança artística e cultural e atenta contra o sossego dos moradores. Uma pergunta inevitavelmente surge: quem ganha com isso? Desde já, não o Carnaval de Olinda e nem a preservação do seu quase cinco vezes centenário Sítio Histórico.
Fica bastante evidenciado que, quando tratamos do Carnaval do SHO, estamos falando de uma manifestação muito especial, repleta de significados e sentidos historicamente construídos por gerações de olindenses natos ou adotados. Tudo isso em um ambiente peculiar: uma cidade colonial, de ruas estreitas e tortuosas, com monumentos valiosos, uma vegetação exuberante e a vida pulsante que vem de seus moradores e se transforma em troças, afoxés, maracatus, ursos, bois e outras manifestações. No entanto, as situações vividas no SHO têm ido totalmente de encontro ao que se podia esperar de um lugar com tantos reconhecimentos, tão querido e admirado tanto no Brasil, como no exterior.
O Carnaval de 2025 deixou um gosto amargo para os foliões verdadeiramente amantes da cidade e de suas tradições culturais. Ruas, praças e largos do SHO foram tomados por um bizarro acampamento feito de barracas e carroças de ambulantes. Botijões de gás, fogareiros, tachos de óleo fervente, poderosas caixas de som e temerárias instalações elétricas proliferaram da noite para o dia bloqueando portas e janelas de moradores. E quem ousou reclamar muitas vezes foi ameaçado. A circulação de motocicletas, carros, carroças e pasmem, até caminhões pesados, atingiu níveis nunca vistos antes. Os veículos, com ou sem o adesivo de autorização de trânsito, se deslocaram e/ou estacionaram em algumas das mais importantes artérias da folia, provocando um perigoso estrangulamento da circulação da multidão. Foi muito triste ver uma agremiação tradicional, Patrimônio Vivo de Pernambuco, ter que desviar seu cortejo diante da impossibilidade de passar com suas orquestras e alegorias. A rua estava bloqueada por uma aglomeração provocada pelo paredão de som de uma batucada. O risco de uma situação de pânico acabar em tragédia é real (vide o lamentável caso do tiroteio em frente ao palco montado no Carmo). Muita gente acaba aderindo às casas camarotes para ter mais comodidade e tranquilidade, mas cabe a pergunta: as normas de segurança exigidas pelos Bombeiros são respeitadas nestes locais garantindo a integridade física de quem comprou os seus caros ingressos? (Não esqueçamos da tragédia da Boate Kiss, em 2013!). A repetitiva decoração oficial tem sido de uma indigência de fazer dó. Há capas de caderno barato com design mais imaginativo que a decoração da cidade nos Carnavais dos últimos anos. Logo em Olinda, terra de tanta riqueza imagética e com tantos grandes artistas.
As estatísticas superlativas, crescentes a cada Carnaval, são sorridentemente anunciadas, mas não são todas, necessariamente, um bom indicativo quando se trata de Olinda. Primeiro, porque o SHO tem limites de espaço e de estrutura que são inelásticos; segundo, porque não se percebe com transparência quanto dos montantes anunciados efetivamente circula na festa e gera arrecadação para aplicação em benfeitorias; e terceiro, porque é perceptível que de ano a ano os transtornos são maiores. Recordemos que a movimentação de Carnaval nas ladeiras e quintais já se inicia em setembro de cada ano, com “prévias” que trazem todo um rosário de problemas. Para não falar dos famigerados “ensaios” de batucada que aniquilam o direito de descansar dos moradores do SHO nos fins de semana.
A gestão do Carnaval de Olinda, com o devido respeito aos que pensam diferente, tem de estar acima do mero cálculo eleitoreiro e dos interesses puramente mercadológicos. A preciosa e irrepetível simbiose entre moradores mantenedores das expressões culturais e o SHO foi um dos elementos que a Unesco destacou na justificativa da concessão do título de Patrimônio da Humanidade para Olinda. Essa feliz e rara conjunção de povo, patrimônio e festa se vê hoje seriamente ameaçada. A força da “grife” Olinda atrai gente que não respeita a cidade e que quer empurrar um modelo de exploração do Carnaval que nada tem a ver com o SHO, pelo contrário: que violenta seu patrimônio (já cotidianamente muito maltratado na última década), humilha sua herança artística e cultural e atenta contra o sossego dos moradores. Uma pergunta inevitavelmente surge: quem ganha com isso? Desde já, não o Carnaval de Olinda e nem a preservação do seu quase cinco vezes centenário Sítio Histórico.