O mundo cristão ocidental perdeu grandes promotores da civilidade

Alexandre Rands Barros
Economista

Publicação: 17/05/2025 03:00

Morreram nos últimos dias o Papa Francisco e Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai. Ambos foram, sem dúvida, dois dos maiores difusores contemporâneos da cultura cristã-ocidental. Suas trajetórias pessoais e políticas revelaram um compromisso profundo com os valores mais essenciais dessa tradição civilizatória. É particularmente significativo que tenham nascido na América Latina, uma região marcada por enormes desigualdades sociais, mas também por uma longa história de resistência, solidariedade e espiritualidade popular. A vida e a obra dessas duas figuras demonstram como é possível unir fé, ética e política de forma coerente e comprometida com os mais vulneráveis.

As mensagens frequentes de ambos, suas posturas e exemplos, farão imensa falta em um momento histórico em que vários dos princípios civilizatórios da cultura ocidental estão sendo sistematicamente atacados. Estamos diante de um cenário preocupante em que ideologias baseadas na disseminação do ódio, do preconceito e da exclusão social se travestem de religiosidade cristã. Muitas dessas ideologias são propagadas por setores do neopentecostalismo e de seitas evangélicas que, ao invés de promoverem o amor ao próximo, à humildade e à compaixão — ensinamentos centrais do cristianismo — transformam a fé em instrumento de dominação, intolerância e poder político.

Tanto o Papa Francisco quanto Mujica sempre defenderam de forma clara e corajosa a solidariedade, a cooperação, o respeito entre as pessoas, e uma sociedade mais justa e igualitária. Esses valores estão no cerne da cultura cristã-ocidental, que serviu de base para o surgimento e posterior desenvolvimento das ideias socialistas. Não por acaso, ambos foram frequentemente acusados por setores conservadores de serem comunistas ou socialistas — como se esses termos, por si só, desqualificassem suas posições. A verdade é que, pela coerência entre seus discursos e ações, e pelo compromisso com os pobres e excluídos, talvez possamos sim dizer que eram socialistas. E isso não deveria ser um demérito, mas uma evidência de que levaram a sério os princípios cristãos que tanto professavam ou respeitavam.

Toda religião, de certa forma, surge como um tipo de superego coletivo, uma estrutura simbólica que orienta o comportamento humano a partir de normas morais e sociais. No caso do cristianismo, essas normas foram originalmente estabelecidas com base nos interesses dos menos favorecidos — os pobres, os doentes, os excluídos. Isso explica a afinidade histórica entre os princípios cristãos e os valores socialistas. A solidariedade, o cuidado com o outro, a partilha e o repúdio ao acúmulo de riqueza estão presentes nos Evangelhos e foram, mais tarde, apropriados pelas ideologias socialistas e comunistas.

Ao longo do tempo, sobretudo a partir do ano 313 d.C., quando o imperador Constantino oficializou o cristianismo como religião do Império Romano, houve uma captura da fé pelas elites. Isso enfraqueceu seu potencial revolucionário. Mas pessoas como Francisco e Mujica, ao retomarem suas raízes, nos lembraram que o cristianismo, em sua essência, ainda pulsa com força nos corações que se preocupam com justiça e igualdade. Ambos vão fazer falta.