Recordando o Livro do Nordeste no seu centenário

André Melo Gomes Pereira, Juiz do TJRN, professor da UFRN
e Marcelo Casseb Continentino, Procurador da PGE-PE, professor da UPE, membro do IAHGP e do IHGB

Publicação: 20/05/2025 03:00

Neste ano de 2025, duas datas bem representativas para a Região Nordeste merecem ser objeto de rememoração, debates e mesmo de comemoração: o bicentenário do Diario de Pernambuco e o centenário do Livro do Nordeste.

O Livro do Nordeste foi concebido para integrar as comemorações do centenário do Diario de Pernambuco, em 1925. Contudo, como destacou Gilberto Freyre, esse episódio adquiriu vida própria e ultrapassou a história da própria instituição que o albergou.

Sempre bom recordar que o Recife dos anos 1920 não era apenas a capital de Pernambuco, mas um polo regional de atração cultural e intelectual de sergipanos, paraibanos, cearenses, piauienses, alagoanos e potiguares, entre outros, em que se desenvolveu o movimento intelectual e regionalista, cujo epicentro foi a criação, em 1924, do Centro Regionalista do Nordeste.

Dirigido por Odilon Nestor e Gilberto Freyre, o Centro Regionalista reuniu vários intelectuais de diversas áreas, como Amaury de Medeiros, Gouveia de Barros, Pedro Paranhos, Carlos Lyra Filho, Annibal Fernandes, Alfredo Moraes Coutinho, Samuel Hardman, Luis Cedro, Ulysses Pernambucano, Antônio Ignácio e Alfredo Freyre, este último pai de Gilberto Freyre e professor catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife.

Os dois principais eventos promovidos pelo Centro Regionalista do Nordeste foram a “Semana da Árvore” de 1924, com especial destaque para as árvores do Nordeste, e o Congresso Regionalista do Nordeste de 1926. Nesse caldo cultural entre a Semana da Árvore e o Congresso Regionalista, integrantes do Centro, sob a liderança de Gilberto Freyre e a convite do Diario de Pernambuco, em razão do centenário de sua fundação (1825-1925), organizaram e publicaram o Livro do Nordeste, em 1925.

O Livro do Nordeste reuniu textos de autores da região com uma temática inovadora, discutindo-se histórica, antropológica e sociologicamente a culinária da região, seus cantadores, suas rendas, sua geografia, economia, fauna e flora. Escrito especialmente para essa publicação, Manuel Bandeira se faria presente com Evocação do Recife, que, segundo Gilberto Freyre, foi pedido “como quem encomenda um pudim ou uma sobremesa para uma festa de bodas de ouro”.

As objeções ao Centro e ao Congresso Regionalista, tido por separatista por segmentos intelectuais do Rio de Janeiro e São Paulo, foram respondidas na mesma época por Moraes Coutinho e Gilberto Freyre. O que nos parece claro e evidente é que os regionalistas viam na tradição e no elemento regional os verdadeiros caminhos para o federalismo brasileiro e para compreensão do Brasil profundo que, para ser moderno, não poderia nem precisava destruir o passado.

Se isso levou alguns para o conservadorismo puro e simples ou para o isolamento, é outro assunto. Escapam também ao presente texto análises de personalidades do porte de Ascenso Ferreira, sempre tido como elo entre o regionalismo e o modernismo em obras como o Catimbó, e de Manuel Bandeira, cujo estilo original é bem anterior ao modernismo ou ao regionalismo do grupo.

O fato é que as influências do Centro Regionalista do Nordeste, do Congresso Regionalista de 1926 e da publicação do Livro do Nordeste de 1925 seriam muito mais relevantes do que os contemporâneos puderam perceber. Interdisciplinaridade (arquitetos, médicos, juristas, sociólogos) e temas de história do cotidiano seriam contribuição relevante do Congresso e do Livro do Nordeste.

Peter Burke em uma das várias análises de Freyre reconhece que ele não imitou Braudel nem Febvre e estes também não o imitaram, mas reconheceram sua originalidade. A inspiração para Gilberto Freyre teria vindo da New History norte-americana. O mesmo Peter Burke, em outra oportunidade, realçou o pioneirismo de Freyre quanto às matérias e à metodologia de seus estudos, pioneirismos esses tão presentes já no Livro do Nordeste, que antecipara em oito anos a publicação de Casa Grande e Senzala. Por isso, para o historiador inglês, Gilberto Freyre foi um dos primeiros intelectuais no mundo a discutir temas como a história do idioma, a história da comida, a história do corpo, a história da infância e a história da habitação como partes da análise integrada de uma sociedade passada. Também foi pioneiro na utilização de fontes, valendo-se de jornais para escrever história social e adaptando a pesquisa social a seus objetivos históricos.

Passados agora cem anos, paradoxalmente, a conclusão possível é a de que o Livro do Nordeste não passou. Ele está presente não só como fonte de pesquisa histórica daquele período tão importante e tão intelectualmente plural da segunda década do século 20, mas também como roteiro para se compreender o Nordeste profundo, revelado ou mesmo inventado para alguns, mas sempre presente na Região e no Brasil. E, assim como o Livro do Nordeste, o Diario de Pernambuco que, comemorando seus duzentos anos de fundação, é parte integrante da cultura regional (e nacional) e história viva do nosso povo.