MC Poze, juventudes e democracia: qual o recado das periferias

Madalena Rodrigues
Diretora de Desenvolvimento Institucional da Escola da Democracia

Publicação: 10/06/2025 03:00

“Já votei! E só votei em homem bonito!” Eu devia ter, no máximo, 9 anos quando ouvi essa frase. Na primeira etapa da Vila da Cohab, em Rio Doce, era comum o voto ser associado a atributos ou ações que em nada se relacionavam com a possibilidade de entregar um bom mandato eletivo. 

Era o desconto na escola particular, o carro que levava para a hemodiálise. Isso sem falar no serviço de segurança privada de idoneidade duvidosa, mas presente até nas ausências. Parecia até filme de Kleber Mendonça Filho, a diferença estava na diminuta renda per capta dentre os personagens da vida real. 

Lembro com nitidez do burburinho sobre a prisão do vereador que chefiava esse grupo de “proteção comunitária”, conforme se autointitulava. A comoção no dia do júri - sim, a acusação era referente a um homicídio -, inesquecível. Nem de longe parecia alguém que devia algo à sociedade ou ao sistema de justiça. Multidão no fórum, imprensa fazendo cobertura, vizinhança mobilizada. Como poderia aquele salvador de existências estar sendo tratado como se um criminoso fosse? Esse era o questionamento que cortava silenciosamente toda aquela atmosfera, num misto de frisson com indignação. Ao ver as imagens da saída do MC Poze após 5 dias de prisão, fui transportada para esse mesmo tempo e espaço. 

Aos 26 anos, o artista carioca que acumula quase 6 milhões de ouvintes mensais nos streamings de áudio, está sendo investigado por apologia ao crime e envolvimento com o tráfico de drogas. 

Tem um MC Poze em cada comunidade do Recife e uma legião de jovens escolhendo diariamente os seus heróis para adorar. O cordão de ouro é só a ponta do iceberg. O porsche, a cereja do bolo. O que vem antes de qualquer ostentação é a cabeça erguida de quem aparenta (e imagina, erroneamente) não ser passível de humilhação. A humilhação cotidiana que, desde a infância, muitos jovens vivenciam. Especialmente os meninos negros, com suas infâncias abreviadas pelo racismo, que os coloca cada vez mais cedo no lugar de ameaça. No lugar de suspeito. O baculejo certamente não alcança os alunos do Damas, mas ajusta com precisão relógio e calendário se mudarmos de endereço. 

Com o que sonham os meninos e meninas do Recife? Pelo que lutam as juventudes que se deslumbram com as vidas nababescas dos MCs enquanto nem água chega em suas torneiras, a depender do CEP? Muito se discute sobre como falar com essa parcela da população, mas pouco se mostra como é que se ouve. 

É a partir de inquietações como essas que surge a Escola da Democracia. Uma iniciativa de três mulheres pernambucanas que acreditam na educação política como ferramenta de mobilidade social a partir do voto livre e qualificado. Num país onde a população mais pobre e predominantemente negra levará 9 gerações até atingir a renda média nacional, segundo a pesquisa “Elevador Social Quebrado”, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, é preciso representantes dispostos e dispostas a tornarem mais curta e mais digna essa espera.

Inspirada no conceito de Quilombismo de Abdias Nascimento - que nos lembra da importância do fazer coletivo e das lutas por liberdades - o nosso sonho enquanto Escola da Democracia é viver num país onde gênero, raça ou classe não definem o destino de cada cidadão e cidadã. E a gente quer ver as juventudes conscientes de que, sim, tudo bem com a ideia de que bens materiais podem trazer felicidade, mas direitos e garantias fundamentais protegidos, sem distinções, por quem nos representa é melhor ainda. Não há dinheiro que pague o direito de viver sem medo.