José Almino de Alencar
Sociólogo, escritor e ex-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa
Publicação: 24/06/2025 03:00
“Toda política é local” é uma definição atribuída a Tip O’Neill, ex-presidente do Congresso dos Estados Unidos. O sucesso de um político dependeria sobretudo de sua capacidade para atender às simples demandas que compõem as preocupações cotidianas e materiais de seus constituintes, longe dos princípios bem intencionados e das idéias intangíveis. Assim, foram construídas durante boa parte do século 20 as máquinas partidárias do Partido Democrata nas grandes cidades americanas, entidades hierárquicas, presentes na maioria dos seus bairros, soldada por uma miríade de favores especiais (ou escusos) - empregos para os correligionários, concessões de serviços, licitações truncadas - advindos de recursos públicos. Chicago era um exemplo perfeito deste sistema.
Em 1976, quando eu fazia um doutorado na Universidade de Chicago, faleceu Richard Daley, prefeito da cidade há 21 anos e presidente do Partido Democrata do Condado de County há 23 anos. Morria um dos últimos “bosses”, chefes todo-poderosos de grandes metrópoles aonde conduziam hábil e firmemente as respectivas máquinas partidárias e o poder político, através do favoritismo como também de pressões ou ameaças aos recalcitrantes; e até mesmo de ocasionais grandes melhorias para o simples cidadão.
Daley, filho de uma família de origem irlandesa e operária, nasceu e morou toda a sua vida em Bridgeport, bairro com essas características, no lado sul da cidade, em casa simples e similar à de seus pais, juntamente com sua esposa Eleonor que conhecera ali mesmo no primeiro ano de faculdade. Mantinha uma biografia impoluta e conduzia um mecanismo desonesto. E toda gente sabia disso e o reelegia.
Naquela época, meu pai, madrasta e irmãos viviam na Argélia. Era seu presidente Houari Boumediene, nome de guerra adotado quando ele aderiu em 1955, aos 25 anos, à Frente de Libertação Nacional, movimento revolucionário que conduziria o país à independência, sete anos depois. Dirigente militar da FLN, lidera desde logo o comando das forças armadas do país e em 1965, através de um golpe militar, assume a presidência do Conselho Revolucionário. Seu governo promove mudanças econômicas em grande escala: nacionaliza e estatiza a exploração e a indústria do petróleo que começava a se expandir. Forma-se assim uma coroa de empresas do estado, de fornecedores de serviços que reuniam nacionais e firmas estrangeiras. Criava-se um novo estamento social de privilegiados composto em muito pelos combatentes revolucionários independentistas, seus parentes e mais chegados. Todo este novo mecanismo era azeitado por comissões, propinas, trocas de favores.
Boumediene mantinha solitário o controle do poder político e manteve-se avesso àquela festança. Nunca morou no Palácio do Governo, morou por muito tempo em uma das casernas, pôs gravata quando já era um presidente veterano. Não havia boato de parente enriquecido ou apartamentos em Paris. Soube-se que casou dois anos antes da sua morte.
Um dia perguntei ao então não tão velho Arraes, como ele explicaria esta aparente harmonia entre uma liderança virtuosa e liderados corrompidos. E ele me respondeu, referindo-se ao presidente argelino: -”Esta é a maneira que ele tem de controlar os outros”.
Ambos, Richard Daley e Houari Boumediene, intuíam ou sabiam que a virtude, a honestidade pessoal lhes asseguravam um poder privilegiado do qual a nova classe estava excluída: a confiança, se não a simpatia do povo. E, talvez, esses atributos da decência comum: a coragem que se espera de um dirigente, o respeito ao bem alheio, sejam componentes decisivos em regimes dependentes da liderança individual.
Enfim, rachadinhas, amealhar apartamentos, comprar lojas de chocolate em lavagens de dinheiro ou contrabandear jóias preciosas prejudicam.
É feio!
Em 1976, quando eu fazia um doutorado na Universidade de Chicago, faleceu Richard Daley, prefeito da cidade há 21 anos e presidente do Partido Democrata do Condado de County há 23 anos. Morria um dos últimos “bosses”, chefes todo-poderosos de grandes metrópoles aonde conduziam hábil e firmemente as respectivas máquinas partidárias e o poder político, através do favoritismo como também de pressões ou ameaças aos recalcitrantes; e até mesmo de ocasionais grandes melhorias para o simples cidadão.
Daley, filho de uma família de origem irlandesa e operária, nasceu e morou toda a sua vida em Bridgeport, bairro com essas características, no lado sul da cidade, em casa simples e similar à de seus pais, juntamente com sua esposa Eleonor que conhecera ali mesmo no primeiro ano de faculdade. Mantinha uma biografia impoluta e conduzia um mecanismo desonesto. E toda gente sabia disso e o reelegia.
Naquela época, meu pai, madrasta e irmãos viviam na Argélia. Era seu presidente Houari Boumediene, nome de guerra adotado quando ele aderiu em 1955, aos 25 anos, à Frente de Libertação Nacional, movimento revolucionário que conduziria o país à independência, sete anos depois. Dirigente militar da FLN, lidera desde logo o comando das forças armadas do país e em 1965, através de um golpe militar, assume a presidência do Conselho Revolucionário. Seu governo promove mudanças econômicas em grande escala: nacionaliza e estatiza a exploração e a indústria do petróleo que começava a se expandir. Forma-se assim uma coroa de empresas do estado, de fornecedores de serviços que reuniam nacionais e firmas estrangeiras. Criava-se um novo estamento social de privilegiados composto em muito pelos combatentes revolucionários independentistas, seus parentes e mais chegados. Todo este novo mecanismo era azeitado por comissões, propinas, trocas de favores.
Boumediene mantinha solitário o controle do poder político e manteve-se avesso àquela festança. Nunca morou no Palácio do Governo, morou por muito tempo em uma das casernas, pôs gravata quando já era um presidente veterano. Não havia boato de parente enriquecido ou apartamentos em Paris. Soube-se que casou dois anos antes da sua morte.
Um dia perguntei ao então não tão velho Arraes, como ele explicaria esta aparente harmonia entre uma liderança virtuosa e liderados corrompidos. E ele me respondeu, referindo-se ao presidente argelino: -”Esta é a maneira que ele tem de controlar os outros”.
Ambos, Richard Daley e Houari Boumediene, intuíam ou sabiam que a virtude, a honestidade pessoal lhes asseguravam um poder privilegiado do qual a nova classe estava excluída: a confiança, se não a simpatia do povo. E, talvez, esses atributos da decência comum: a coragem que se espera de um dirigente, o respeito ao bem alheio, sejam componentes decisivos em regimes dependentes da liderança individual.
Enfim, rachadinhas, amealhar apartamentos, comprar lojas de chocolate em lavagens de dinheiro ou contrabandear jóias preciosas prejudicam.
É feio!