Pedro Pessanha
Médico, gestor e presidente do Concept Hospital Dia
Publicação: 02/07/2025 03:00
No Brasil colônia do século 18, nasceu em Pernambuco um homem que mudaria os rumos da medicina nacional: José Correia Picanço - médico, professor e cirurgião que ousou desafiar um sistema de saúde praticamente inexistente. Em um país sem escolas médicas, hospitais estruturados ou práticas científicas consolidadas, Correia Picanço fundou as duas primeiras faculdades de medicina do Brasil - na Bahia e no Rio de Janeiro - introduziu o ensino anatômico em cadáveres humanos e realizou procedimentos inéditos, como a primeira cesariana bem-sucedida em território nacional, no Recife, em 1817.
Mais de duzentos anos depois, o Brasil é outro — mas muitos dos desafios de Picanço ainda nos assombram. Hoje, em 2025, somos um dos países com o maior sistema público de saúde do mundo, o SUS, que garante acesso universal, gratuito e integral à saúde. Temos avanços notáveis em imunização, transplantes e vigilância epidemiológica.
Ao mesmo tempo, convivemos com filas intermináveis para cirurgias eletivas, déficit crônico de leitos, baixa eficiência gerencial e desigualdade de acesso, principalmente fora dos grandes centros urbanos. Enquanto países como Coreia do Sul e Canadá implementam sistemas híbridos que conciliam universalidade com inovação digital, o Brasil ainda patina entre a excelência pontual e a precariedade estrutural.
É curioso, e simbólico, que o Hospital Correia Picanço, em Recife, tenha vivido em 2025 dois marcos antagônicos: foi premiado nacionalmente pela resposta eficaz ao surto de meningite viral, reforçando seu papel essencial em doenças infectocontagiosas; e poucas semanas depois, teve que encerrar sua UTI pediátrica, por falta de recursos e reorganização da rede. É um retrato cruel da realidade brasileira: ao mesmo tempo competente e frágil.
Diante desses fatos, o que podemos reaprender com Correia Picanço? Ele inovou sem estrutura, sem financiamento e sem tecnologia. O que o movia era uma visão sistêmica e a coragem de enfrentar o status quo. Compreendia que a medicina ia além do ato clínico: era, acima de tudo, uma construção social. Suas iniciativas influenciaram políticas públicas, contribuíram para a formação de profissionais e lançaram as bases do que viria a ser, décadas depois, o sistema de saúde brasileiro.
Hoje, com toda a tecnologia disponível, como a inteligência artificial, medicina de precisão, prontuários eletrônicos integrados, robótica cirúrgica, falta-nos muitas vezes o que Picanço tinha: projeto, continuidade e ambição nacional. Como médico e gestor, vejo isso todos os dias. Duas realidades tão díspares: um Brasil referência na saúde pública - mas refém de uma ineficiência impressionante - e um outro Brasil com um desenvolvimento invejável no setor privado da saúde, com várias tecnologias e recursos facilmente disponíveis nos principais centros.
Mas a verdadeira transformação não virá apenas de iniciativas isoladas. Precisamos agir de modo a reestruturar a atenção básica como eixo central de prevenção; desburocratizar a gestão pública da saúde, com metas claras e indicadores de desempenho; estimular parcerias público-privadas responsáveis, com foco em resolutividade; formar médicos preparados para o Brasil real, aquele fora dos grandes hospitais universitários; e, sobretudo, recuperar a vocação do SUS como um direito social, não apenas como uma política emergencial.
O Brasil precisa, mais do que nunca, de uma reforma corajosa e sustentável da saúde. E ela começa não com fórmulas prontas, mas com o resgate de um valor antigo: compromisso com o futuro da vida. Se quisermos honrar quem construiu os alicerces da medicina nacional, como Picanço, precisamos parar de administrar crises e começar a construir soluções. A tecnologia já existe. Resta termos a coragem que o pernambucano teve há mais de 200 anos.