Como o Morro se vê Projeto de intervenção urbana com fotografias gigantes orgulha o Morro da Conceição de sua própria história

Silvia Bessa
silviabessa.pe@dabr.com.br

Publicação: 08/12/2014 03:00

Ver as fotos faz os irmãos Gilson (sentado) e Antônio lembrarem do tempo e da mãe (PAULO PAIVA/DP/D.A PRESS)
Ver as fotos faz os irmãos Gilson (sentado) e Antônio lembrarem do tempo e da mãe
Eram 5h30 da manhã, dona Maria José da Silva abriu a porta da casinha de portão estreito que fica no topo da Ladeira do Pique, no Morro da Conceição, para tirar o lixo, um resumo de sua solitária rotina. Quando levantou a vista, deparou-se com uma fotografia gigante de um fiel que vestia camisa estampada e imagem de Nossa Senhora da Conceição. A foto, de papel colado, preenchia quase toda a parede da fachada. Dona Maria olhou para ela e deu graças ao passado, às reformas e à pintura rosa da residência onde dorme e a qual espana desde as 4h da manhã, ao salário mínimo que recebe depois de anos trabalhando como babá e aos amigos que conquistou. A vizinha, evangélica avessa ao culto às imagens, reclamou em nome do marido.

“Sabe o que fiz? Fechei a porta e fiquei orgulhosa da minha fotografia. A gente é pobre, não pode fazer o que quer porque o dinheiro não dá. Por que depois de 87 anos de vida não posso ter esse luxo? Ganhei uma arte e posso ficar com ela enfeitando a minha parede. Pronto”, mostra, orgulhosa, dona Maria - uma das moradoras do Morro que recebeu uma imagem do projeto de intervenção urbana Morro de Fé, de autoria do fotógrafo Beto Figueiroa.

Em um alpendre, no topo da Ladeira do Pique, com seus 365 degraus que ligam o Largo Dom Luiz ao Pátio da Matriz, os irmãos Adilson e Antônio Carlos de Souza passaram os últimos dias olhando para a foto em preto e branco com o rosto de Amauri José Gomes. Amauri é figura conhecida no morro: pagou promessa por mais de uma década subindo “nadando” até o pé da santa. “As cores querem dar ideia de antigo, não é?! Me fez ter saudade de mãe, que morreu mas era uma devota fiel”, relaciona o motorista Adilson. “Todos da família estarão neste feriado. Vamos lembrar dela e do que vivemos juntos”, afirma Antônio.

Para muitos moradores do Morro da Conceição, hoje protagonista da festa que celebra nesta segunda-feira a padroeira religiosa do Recife, a exposição Morro de Fé tem sido uma oportunidade de reconhecimento e de memória. Vinte e sete fotografias, impressas em até 14 metros de largura, foram afixadas com autorização dos moradores em paredes e telhados. Trazem registros de fiéis antigos subindo ajoelhados, arrastados, de crianças com rosas para entregar à Santa, de luzes, suvenires, de flagras de devoção e entrega religiosa.

Foram sucessivas reuniões e debates na comunidade. A negociação foi “complicada”, relata João Liberato, de 35 anos. João, que se diz conhecido por “Severino quebra-galho”, intermediou junto a moradores a afixação das fotos em muros grandes e visíveis. “Nunca fomos alvo de uma exposição. É um resgate da festa do Morro, da comunidade”, define. “Agora é só elogios, a mim inclusive que ajudei a montar”. Teve terreiro de raízes africanas que mandou tirar a foto porque houve falha na comunicação, gente que preferiu a foto da casa alheia, mas houve morador como dona Sevi que deu aula de compreensão artística.

No Morro da Conceição, Severina Pereira, a dona Sevi, é autoridade. Menino de todo lado aparece quando ela passa com sacolas do mercadinho. É ela quem canta, à capela, desde 1975 o hino de repetição da abertura da missa da aurora, às 4h do 8 de dezembro. Mulher de fala à moda sacerdotal, garante que nunca ascendeu uma vela. “A fé não cabe numa vela”, explica, sem denotar  crítica a quem pensa diferente. Dona Sevi gosta é de ver a chama do Morro acesa.

 “Dei apoio quando me perguntaram sobre as fotos porque digo que o vem de bom para o morro vem não só para a Igreja, mas para os moradores da comunidade”, afirma. O muro lateral da casa de dona Sevi ganhou a foto de uma menina-devota de saia rodada (“Veja que delicadeza”). Não conformada, brigou para “ser premiada” por uma segunda imagem.  “Premiada” é definição dela. Frisa-se, uma senhora de 79 anos da periferia da capital.

Quem bem definiu a experiência no Morro da Conceição e os resultados dela foi o ex-secretário de Planejamento do estado, Cláudio Marinho - um dos maiores observadores urbanos de Pernambuco. “Se a cidade abandona a escala humana com a construção de não-lugares emparedados por torres de vidro e azulejo, Beto faz o inverso”, diz. “Amplia a escala e o homem toma conta da paisagem, não deixando dúvidas que ali mora gente e que a cidade, como já ensinava Patrick Geddes em 1904, não é um lugar no espaço, mas um drama no tempo”.

A exposição de fotografias de Figueirôa estará até  6 de janeiro nas principais subidas e descidas do Morro. Muitos moradores já adiantaram que pretendem manter as imagens nas fachadas. É sinal de que o Morro se viu naquelas imagens gigantes.