A liberdade de ser ela mesma Em abrigo de Jaboatão, criança de nove anos que nasceu menino, mas sempre se identificou como garota, foi adotada por uma mulher trans

Marcionila Teixeira
marcionilateixeira.pe@dabr.com.br

Publicação: 27/09/2016 03:00

Criança pode se vestir como sempre quis, após conhecer seus pais adotivos (Peu Ricardo/Esp.DP)
Criança pode se vestir como sempre quis, após conhecer seus pais adotivos

Alice, 9 anos, escolheu um vestido rosa para ir à Vara da Infância e Juventude de Jaboatão dos Guararapes. Na cabeça, colocou um diadema da mesma cor. O rosto foi levemente maquiado com a ajuda da sua nova mãe. Alice é uma menina trans. Durante um ano e meio, permaneceu no abrigo Lar de Maria, naquele município, vestindo-se como menino, apesar de sempre deixar clara sua identificação como garota. Alice ganhou liberdade no vestir após conhecer seus pais adotivos, o casal Alexya Lucas Evangelista, 35, e Roberto Salvador Júnior, 27, moradores do estado de São Paulo. Assim como a filha que acaba de conhecer, Alexya também é mulher trans. “Vou fazer por ela o que a sociedade geralmente não faz pelas trans. É preciso entender que não se trata de uma escolha e sim de uma condição”, diz.

Na última sexta-feira, a família participou de uma audiência com a juíza Christiana Caribé para obter a guarda de Alice para fins de adoção. Logo depois, embarcaram para Cabedelo, na Paraíba, onde passaram juntos o primeiro final de semana. O casal encontrou Alice graças ao programa de busca ativa da Coordenadoria da Infância e Juventude e da Comissão Estadual Judiciária de Adoção do Tribunal de Justiça de Pernambuco. “Já adotamos um menino de 11 anos em São Paulo e nosso sonho era adotar uma criança trans”, explica Alexya. O casal ainda deseja um terceiro filho. Ou filha.

O programa busca inserir em famílias substitutas crianças como Alice, fora do padrão normalmente procurado por candidatos a pais. São meninos e meninas com mais de sete anos, com doenças graves, com deficiências física ou mental e grupos de irmãos. Alice, inclusive, já tinha um histórico de devolução por parte de uma família adotiva. Através da iniciativa, as equipes da Varas da Infância e Juventude do país trocam informações para facilitar os encontros. Hoje, o programa tem uma lista com 65 crianças e adolescentes nesse perfil cujos pais perderam o poder familiar sobre eles.

Alice fala pouco. Segundo a mãe, está ansiosa com as novidades. A família programou embarcar hoje, logo cedo, para Mairiporã, em São Paulo. Lá a menina vai estudar com o irmão na mesma sala do 3° ano do Ensino Fundamental. O casal, que está junto há oito anos, diz estar preparado para enfrentar o preconceito. Alexya é engajada na luta pelos direitos LGBT. Além de professora, assim como o marido, é costureira e pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana, conhecida no país por incluir pessoas trans.

Alexya conta ter enfrentado momentos de desespero a ponto de tentar cometer o suicídio. “Tinha medo de não ser aceita. Somente assumi minha condição aos 29 anos, ou seja, há pouco tempo. E, ao contrário do que pensava, não fui desprezada pelos meus pais”, lembra. A professora chegou a passar quatro anos em um seminário para formar-se padre. “Vivi uma grande crise existencial, sentia culpa, não entendia porque era diferente. Como eu tinha uma grande ligação com a religião, foi a igreja cristã protestante que me ajudou”, conta.

Alice anda mudando conceitos por onde passa. “Ela foi um desafio para a equipe. O final foi muito gratificante. Confesso que ela ensinou muito mais para a gente do que a gente para ela”, disse a pedagoga Genilda Rodrigues. Um dia antes da audiência no Fórum de Jaboatão, ela comunicou à mãe o nome feminino que deseja ser chamada, inclusive nos seus documentos quando tiver mais idade. Planeja mais feliz seu futuro. No meio de uma conversa com Alexya, segredou: “Quero crescer igual a mainha”, contou.

* Nome fictício

Estatísticas

Adoção em Pernambuco
  • 355 crianças e adolescentes aguardam adoção
  • 996 pretendentes estão no cadastro
No Brasil
  • 6,9 mil crianças e adolescentes aguardam
  • 37,3 mil pretendentes estão cadastrados