Tesouros póstumos O Viver teve acesso aos últimos esboços feitos pelo artista plástico pernambucano Gilvan Samico, morto no ano passado. Trabalhos inacabados tinham, todos, uma figura feminina central

Júlio Cavani
juliocavani.pe@dabr.com.br

Publicação: 02/02/2014 03:00

Personagens retratados na obra seriama família dele (EDVALDO RODRIGUES/DP/D.A PRESS)
Personagens retratados na obra seriama família dele
As gravuras do consagrado artista plástico pernambucano Gilvan Samico (1928-2013) nunca ficarão presas ao passado. Seu universo visual continuará a inspirar as novas gerações e a ganhar infinitas interpretações. Até os últimos dias de vida, ele se mantinha em plena atividade e é impossível prever quais seriam os desdobramentos de sua obra. Ainda guardados em seu ateliê, os esboços daquela que seria sua última gravura, no entanto, são pequenas chaves que apontam para um breve futuro próximo.

Nas últimas décadas, Samico produzia apenas uma xilogravura por ano. Até chegar ao resultado definitivo, fazia dezenas de versões e estudos, geralmente desenhados sobre folhas de papel de tamanhos variados, mas sempre com respeito às proporções finais. “Ele chegou a fazer 100 esboços para uma única gravura”, exemplifica o filho, Marcelo Peregrino.

A última xilogravura, sem título, já tinha pelo menos dez esboços, que poderiam ser apenas o início de uma ideia, mas já demonstravam a recorrência de alguns personagens e orientações geométricas. Jacarés, lobos, tamanduás, cobras, peixes e pavões são os animais que aparecem nas imagens. Algumas versões mostram todos eles, outras omitem alguns.
Gravurista chegava a fazer até 100 versões de esboços para umúnico trabalho (EDVALDO RODRIGUES/DP/D.A PRESS)
Gravurista chegava a fazer até 100 versões de esboços para umúnico trabalho

Em todos, há sempre uma figura feminina na área central. Na parte de baixo, é possível ver grupos de homens, de um lado,
e de mulheres, do outro. “Minha mãe (Célida) acha que essas pessoas representam nossa família. Ela estaria no centro e, embaixo, viriam netos, neta, filho, filha e nora”, revela Peregrino.

Uma grande forma circular rege a parte superior dos esboços. Em um, são três círculos, mas, na maioria, há uma única semicircunferência central. Os chapéus e barbas dos homens indicam uma referência rural, mas a roupa da protagonista sugere uma citação a culturas indígenas pré-colombianas. “Para os últimos quadros, ele gostava de pesquisar antigas lendas descritas no livro Memória do fogo, de Eduardo Galeano”, confirma o filho, citando o uruguaio.

O acervo

Não há projetos permanentes relacionados ao destino do acervo que se encontra guardado na casa de Samico, na Rua de São Bento, em Olinda, mas a família tem interesse em criar um instituto ou uma fundação para preservar e divulgar o trabalho dele. “Pouca gente conhece as matrizes de madeira usadas para imprimir as gravuras. Todas estão guardadas”, revela o artista, ao mostrar que o pai costumava aplicar a tinta preta de um lado e as cores do outro lado da placa. “A conservação aqui é boa”, garante. Ele mostra que Samico gostava de construir máquinas e mecanismos, de metal ou madeira, para usar. O acervo tem peças raras, como carimbos, pinturas, desenhos, esboços e gravuras feitas com matrizes de metal e pedra: “Tem tesouros dentro das gavetas dele”.
Marcelo Peregrino, filho de Samico, revela que família pretende criar instituto ou fundação (EDVALDO RODRIGUES/DP/D.A PRESS)
Marcelo Peregrino, filho de Samico, revela que família pretende criar instituto ou fundação

Análise da obra


Weydson de Barros Leal (poeta, crítico de arte e autor do livro Samico, da Editora Bem Te Vi)

Estive com Samico em dois momentos dessa última gravura. O primeiro, ainda nos esboços e, depois, quando a pintura já estava pronta e os estudos quase definidos. Inicialmente, trata-se de uma gravura de dimensões incomuns, muito reduzidas para o padrão usual que ele fazia. Isso se deve, é claro, às limitações de saúde que impediam sua ampla mobilidade. Mas o que se pode perceber é a mesma inquietação de um artista que buscava o equilíbrio e a perfeição até o último momento, e que também quis realizar em óleo este trabalho, pois a pintura sempre foi sua paixão secreta. Sobre os elementos que compõem a gravura, podemos dizer que ali está um resumo inteligentíssimo de sua obra, como uma grande declaração de amor à família. Há variações ao longo das versões do desenho, mas também há elementos que permanecem, como a mulher central com dois ramos e as seis figuras do plano inferior. (Há uma versão com oito figuras, mas logo Samico percebeu que definitamente eram seis: seu filho e seus dois netos de um lado; sua filha, sua neta e sua nora do outro). Abaixo de seus descendentes há os peixes - símbolos da reprodução, da multiplicação. Em algumas versões há, ainda, no plano central, em torno da grande figura feminina, jacarés, lobos e cobras, que não se aproximam respeitando a autoridade e a força dessa mulher. Claro que essa mulher é Célida, esposa de Samico, que sempre foi o eixo de equilíbrio de sua vida e de sua criação, o elemento balizador que lhe permitiu criar estando sempre protegido pelo amor que ela lhe dedica. Há ainda os arcos, como uma redoma, há estrelas e, finalmente, um pavão, que acredito representar a arte com todas as suas cores e majestade: creio que essa seria a versão final da gravura.”