Poesia que se canta Com o espetáculo "Concerto de Assobios", em cartaz neste sábado na Casa de Alzira, novo espaço para shows do Recife, Gonzaga Legal intercala poemas de Manoel de Barros com pérolas da música brasileira

Allan Lopes

Publicação: 31/05/2025 03:00

 (CRYSLI VIANA/DP FOTO)

Há poemas que pedem para ser cantados e canções que são poemas à espreita. Este dilema não será um problema no espetáculo Concerto de Assobios, em que a poesia de Manoel de Barros ganha ares de música popular na voz calorosa de Gonzaga Leal. O encontro acontece neste sábado, na Casa Alzira, novo espaço para shows recém-inaugurado no Bairro do Recife, em um recital acústico e afetivo, e é feito para quem acredita, ou ainda desconfia, que poesia e música, no fundo, falam o mesmo idioma.

Reconhecido como um dos intérpretes mais refinados do cancioneiro local, Gonzaga cultiva uma relação antiga com a literatura, já comprovada no disco Na Trilha de Uma Missão (2022), no qual resgatou textos de Mário de Andrade. A conexão com Manoel de Barros, no entanto, surge de um lugar mais íntimo, de quem encontrou nos versos do poeta um refúgio em tempos difíceis, depois de perder um amigo. “Manoel sempre foi um defensor da palavra descontrolada e da ignorância. E, talvez por isso, ele me salvou num momento em que precisei desaprender a dor para seguir”, revela o cantor, em conversa exclusiva com o Viver.

Aos poucos, foi se tornando claro para Gonzaga que a sua travessia pelo universo barrosiano pedia para ser compartilhada além do silêncio individual. Assim nasceu o desejo de criar algo maior, fosse musical ou teatral, mas genuinamente brasileiro. Ao longo de 15 anos, o artista vasculhou cada livro, anotou entrevistas e deixou que os versos fermentassem em seu repertório, até encontrar o ponto exato em que a poesia e a música popular se reconhecessem como irmãs.

O espetáculo, que estreou em 2019, agora retorna mais lapidado e essencial. “As canções e poesia presentes nesse recital expressam um sentimento do sagrado que só existe na grande poesia, neste caso a do Manoel de Barros, e nas canções serenadas do Brasil, que dialogam encantadoramente com o que nosso poeta nos propõe. Estão lá o lírico, o brejeiro, o ingênuo, o simples, o popular e o trivial”, explica o cantor. Foi a partir desse olhar que ele escolheu músicas como A Santinha Lá da Serra (Moacir Santos/Vinicius de Moraes), Toada (Paulinho da Viola) e Chão de Estrelas (Sílvio Caldas/Orestes Barbosa).

A pesquisa não resultou apenas na escolha de um repertório, mas também na construção de uma dramaturgia poética. Para conduzir o público por esse território de palavras e sons, a apresentação se organiza em três blocos. ‘O Onde’ apresenta o universo geográfico e imaginário do poeta. ‘O Quem’ revela como Manoel se via e se descrevia. Já ‘O Que’ explora seu tema predileto: os detalhes sem importância que ele transformava em poesia.

É nesse trânsito entre o sagrado e o trivial que Concerto de Assobios transporta o público para outros espaços da linguagem. “Vamos retratar o fluxo do ser humano, do que ele tem de mais potente. A humildade das formigas, a singeleza da infância, a capacidade de inventar, de construir um lugar no mundo e o poder de intercambiar experiências e do alargamento do dizível pela força das poéticas com canções da tradição oral brasileira”, adianta Gonzaga. Assim, canções e poemas mostram o extraordinário que existe no cotidiano de cada um.