Lenne Ferreira
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Publicação: 29/06/2014 03:00
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Detalhe de Mãe Biu |
Na comunidade Portão de Gelo, em Olinda, rua tem nome de mãe de santo e casa tem cor de orixá. Endereço do terreiro Ilê Axé Oyá Meguê, da Nação Xambá, o local guarda as memórias de resistência dos xambazeiros no estado, que teve como líder religiosa mais expressiva a yalorixá Severina Maria da Silva. Falecida em 1993, Mãe Biu, como é chamada por todos, completaria 100 anos neste domingo. Durante o dia, os xambazeiros da nova e velha geração, parentes de sangue e espirituais, cantam e dançam para a matriarca da tradição Xambá.
A comemoração não tem valor apenas festivo. Para o povo de Xambá, o dia 29 de junho representa um reencontro com as raízes que deram origem à comunidade, composta por parentes consanguíneos de Mãe Biu e filhos de santo, que preservam os ensinamentos da matriarca. É nesse dia que os filhos do terreiro vestem roupa nova, preparam pratos especiais, recebem parentes distantes. A celebração foi criada há 49 anos pela aniversariante depois de um episódio triste: a morte de uma criança em uma cacimba da comunidade. A matriarca assegurou aos orixás homenageá-la todos os anos. O que era promessa virou tradição, e os filhos da casa fazem da organização da festa um rito de devoção.
Tudo é preparado com sentimento e empenho, desde a ornamentação das bandeiras nas cores dos orixás cultuados pela Nação, passando pela costura das saias para as meninas que dançam coco e a renovação da pintura. Neste ano, um grupo de grafiteiros parceiros ornaram as paredes com elementos simbólicos que retratam a história da yalorixá. Maria do Carmo de Oliveira, 61, é sobrinha, filha de santo e afilhada de Mãe Biu. Todos os anos junta tecido estampado e linha para costurar as roupas das meninas. “A festa é motivo de orgulho pra gente”, diz.
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Preparativos para a festa |
A sambada também tem valor afetivo para gente que não tem vínculo religioso com o terreiro, mas conviveu com Mãe Biu. Para os vizinhos, a yalorixá aparece como mulher solidária. “Mãe Biu ajudava a todos. Ninguém ficava desempregado ou sem ter onde morar. Não tinha coisa que você pedisse que ficasse sem ela resolver”, diz o motorista Fernando Palmeira, 73, vizinho do terreiro. Palmeira é católico, mas todo ano participa da festa. Vez ou outra, é convocado pelos xambazeiros para ajudar no transporte de ebó (oferenda) aos orixás.
Mãe Biu, filha de Ogum e Iansã, era anfitriã atenciosa. “Ficava na cozinha servindo os convidados”, conta a sobrinha Maria do Carmo, que admite: “Preferia quando a festa era só da família. A gente chegava, dava a benção e ficava conversando com Mãe na cozinha”. Hoje, o pequeno galpão ao lado do terreiro já não comporta mais os convidados que aparecem em dia de sambada. No ano passado, três mil passaram por lá.
Os xambazeiros fazem questão de preservar as características tradicionais da festa. Não há programação com horários nem atrações definidas. “A ideia é fazer uma sambada aberta para quem quiser cantar e tocar”, explica Guitinho da Xambá, vocalista do grupo Bongar, nascido no terreiro. A homenagem inclui cortejo que terá à frente réplica gigante de Mãe Biu, feita pelo bonequeiro Sílvio Botelho.
O babalorixá Adeildo Paraíso da Silva, o Pai Ivo, filho mais novo de Mãe Biu, é quem está à frente do terreiro. “Foi minha mãe quem os reuniu, dando condições para que o culto aos orixás prosseguisse”, orgulha-se. A sambada em tributo a Mãe Biu é síntese da gratidão pela liderança dela. Um grito de resistência e valorização de um povo que sobrevive e revive as tradições numa rua de casas coloridas e costumes simples, onde os laços afetivos e espirituais se renovam a cada toque.
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Preparativos para a festa |
Marcas da repressão
A Nação Xambá surgiu em Maceió (AL) e teve como maior disseminador o babalorixá Artur Rosendo Pereira. Na década de 1920, veio ao Recife fugindo da repressão policial rumo a Campo Grande. Nova repressão, pelo Estado Novo, em 1938, fechou as portas da casa. Sob a liderança de Mãe Biu, os cultos voltaram, perto do Rio Beberibe, em 1951, onde foi fundada a Portão de Gelo com a restituição do terreiro Santa Bárbara - Ilê Axé Oyá Meguê. A yalorixá não poderia prever, mas ao guiar o povo ao Portão do Gelo, originava o primeiro quilombo urbano de Pernambuco, assim reconhecido, em 2006, pela Fundação Cultural Palmares.
Xambá da liberdade
A visibilidade conquistada pelo povo da Xambá serviu para elevar a autoestima da geração de xambazeiros mais jovens. Para eles, os episódios de intolerância são histórias contadas pelos mais velhos. “Minha mãe dizia que iria bater em mim seu eu dissesse que era de terreiro”, lembra Ivo. Hoje, crianças e adolescentes encontram na religião uma forma de empoderamento social. Um exemplo desse orgulho é o grupo Coco Miudinho, composto por crianças e adolescentes da Xambá. “Hoje, a molecada vivencia o Xambá com mais liberdade e não tem vergonha de dizer que é de terreiro”, acredita Guitinho da Xambá. O terreiro custeou com recursos próprios a construção, em 2002, do Memorial Severina Paraíso da Silva, composto por acervo fotográfico e documental com informações que datam da década de 1920 até os dias atuais.
Disseminação cultural
A musicalidade nos ritos da Nação Xambá subiu aos palcos e conquistou visibilidade. O grupo Bongar, composto por filhos do terreiro educados dentro da tradição, fez do culto aos orixás uma expressão artística. “A música sempre esteve presente em nossa vida de maneira religiosa”, conta Guitinho do Xambá. A vivência está presente no CD Festa de terreiro, versão do DVD que o grupo lança neste domingo. O Portão do Gelo receberá um centro cultural, que já está sendo erguido pelo Governo do Estado como contrapartida à aquisição de um terreno próximo à comunidade. Contará com anfiteatro para 80 pessoas, biblioteca e telecentro, além de oficinas de qualificação profissional.