Fellipe Torres
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Publicação: 08/06/2014 03:00
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Às vésperas da Copa do Mundo de 1950 no Brasil, quando o pernambucano Nelson Rodrigues começou a escrever crônicas esportivas em a Última Hora, havia vários jornalistas na mesma função. Os textos acalorados, com descrições mais emotivas, apaixonadas, ufanistas, competiam com a análise meramente técnica dos jogos nas publicações. Pelas expressões marcantes e pelo poder de misturar esporte e sociedade nas frases, o estilo ajudou a refletir e delinear traços da identidade nacional - dentro e fora das quatro linhas do campo. Agora, quando o país sedia o torneio pela segunda vez, dificilmente o torcedor encontra textos com a mesma paixão de décadas atrás.
Na mídia impressa, onde o espaço foi ocupado pela objetividade tão criticada por Nelson, poucos ainda “trazem vida” ao futebol: Luis Fernando Veríssimo, José Roberto Torero, Xico Sá. Nenhum deles, porém, cronista esportivo de profissão. A figura do profissional está quase extinta dos jornais.
“Ao observar Nelson, Zé Lins do Rego, Drummond, você vê que falta algo nas crônicas de hoje. Os textos são mais simples, diretos, sem nada de literário”, diz Janilto Andrade, professor de teoria da literatura na Universidade Católica de Pernambuco. “Talvez o leitor seja menos exigente. É um fenômeno amplo, que não se restringe à crônica”.
Para o pesquisador Alisson Matos, da Fapcom/SP, nas redações ainda há profissionais capazes de textos excelentes, como Mauro Betti, Juca Kfouri, Tostão e João Márcio, mas as crônicas esportivas como feitas antigamente se tornaram raras por causa do jornalismo moderno. “Há maior preocupação com a informação detalhada, exata. Não sei se o torcedor de hoje se interessaria por um texto voltado à fantasia. Nelson Rodrigues escrevia para quem não assistia aos jogos. Era o olho do torcedor”.
Após o agravamento de um problema de visão, o “Anjo Pornográfico” chegou ao ponto de levar o jornalista carioca Marcelo Rezende até os estádios para saber o que acontecia em campo e, assim, produzir as crônicas. “Esses textos só iriam ser lidos no dia seguinte pelo torcedor desinformado. Hoje, assim que o jogo acaba, a internet dá todos os detalhes. A velocidade da informação contribuiu para diminuir o que foi a crônica esportiva”, conclui Matos.
Ironicamente, a internet abriga tentativas de dar sobrevida às crônicas de valor literário, a exemplo de Impedimento.org, Universidade do futebol e Trivela. “Nossos textos atendem a três critérios: falar do futebol na América do Sul, ser bem escritos e exclusivos. Abrimos espaço a diversos formatos, inclusive mais literários”, diz Douglas Ceconello, do Impedimento. “Atendemos aspectos mais obscuros do jornalismo esportivo, com análises enviesadas que dão mais atenção ao extra campo, bem como a personagens que dificilmente têm atenção de veículos tradicionais”.
Na história
Lima Barreto
Crítico ferrenho do futebol, era contra tudo o que o esporte representava, como a importação de hábitos estrangeiros. Tratava o tema com ironia.
Das coisas elegantes que as elegâncias cariocas podem fornecer ao observador imparcial, não há nenhuma tão interessante como uma partida de football. É um espetáculo de maior delicadeza em que a alta e a baixa sociedade cariocas revelam sua cultura e educação”.
Revista Careta, 1920
Gilberto Freyre
O sociólogo pernambucano acreditava na nacionalização do futebol, com atletas mulatos e a ginga e malícia tupiniquins.
O nosso estilo de jogar parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia e ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual (...) nossos passes, pitus, despistamentos, os nossos floreios com a bola, alguma coisa de dança e capoeiragem”
Diario de Pernambuco, 1938
Nelson Rodrigues
Expoente da crônica esportiva, criou expressões que foram imortalizadas, como o “complexo de vira-latas”, “óbvio ululante”, “a pátria em chuteiras”. Nas crônicas, mesclava realidade e ficção. Foi graças a uma crônica do pernambucano que o jovem Pelé ganhou o título de rei do futebol:
Verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis”.
Manchete Esportiva, 1958
Mario Filho
Defensor radical do esporte, o jornalista pernambucano fazia a relação entre o futebol e a construção de uma identidade nacional. Em 1936, fundou o Jornal dos Sports, primeiro veículo especializado em futebol. Irmão de Nelson Rodrigues, foi ele quem trouxe para a crônica uma linguagem mais simples, acessível, que aproximou o público.
José Lins do Rego
Cronista do Jornal dos Sports, era apaixonado pelo Flamengo.
Apesar de tudo, o rapaz ainda é o melhor do Brasil. Reclamando, enfezado, irritando até as traves dos gols, ainda é ele o melhor, o mais eficiente, o de mais classe, o mais capaz. Outros poderão vir, mas, por enquanto, ninguém se aproxima dele”
Jornal dos Sports, 1946, sobre
o jogador Heleno de Freitas
Graciliano Ramos
Considerava o futebol um modismo.
(O futebol) vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a ideia fixa de muita gente. (...) Vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo fogo de palha capaz de durar bem um mês”.
O índio, 1921
Armando Nogueira
Autor de crônicas de grande apelo estético e recheadas de metáforas. Cunhou frases como:
Para entender a alma do brasileiro é preciso surpreendê-lo no instante do gol”. “A bola rola para todos, mas só dá bola para alguns.” “Se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola”. “Jogador comum vê a jogada, o craque antevê”.
João Saldanha
O cronista abordava múltiplos aspectos do futebol, sobretudo aqueles relacionados aos bastidores do esporte. Criou expressões como:
a vaca vai pro brejo”, “mostrar o mapa da mina”, “entregar o ouro aos bandidos”, “estar no bagaço”, “zona do agrião”, “ir para o vinagre”, “coelhinho de desenho animado”
Juca Kfouri
Jornalista esportivo contemporâneo, não investe tanto no lado “passional” das crônicas de outrora. Há poucos dias, publicou no blog:
Novo dia iluminado na Granja Comary (...) um gol por cobertura pela esquerda de Hulk, superando o goleiro Júlio César. Um gol espetacular do atacante que muitos, por ver seu físico, imaginam que seja só força. Erram feio. Além de força, Hulk tem jeito”.