Forró como lar afetivo
No novo álbum, Joyce Alane mistura memória, identidade e resistência poética em um mergulho pelas tradições da música popular brasileira
Pedro Cunha
Especial para o Diario
Publicação: 02/06/2025 03:00
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Há artistas que decidem retornar não apenas geograficamente, mas poeticamente, ao lugar onde tudo começou. Joyce Alane faz esse caminho em Casa Coração, álbum já disponível nas plataformas digitais. O ponto de partida simbólico é Moreno, na Região Metropolitana do Recife, onde ela cresceu e construiu suas primeiras memórias. É de lá que vem a inspiração para um trabalho que entrelaça lembrança e identidade. Registrado como um gesto de preservação de si, o álbum chega no embalo das festas juninas, período que, para Joyce, carrega forte valor afetivo. “Esse álbum é uma forma de nunca esquecer quem eu sou”, afirma a artista, que passou a infância entre ladeiras e arraiais. Neste mês, ela leva as canções de Casa Coração para os palcos, com shows confirmados no Recife, em Gravatá e em Serra Negra, conectando o passado e o presente com a mesma emoção de quem canta para não esquecer.
No projeto, Joyce mistura forró e MPB com naturalidade e afeto. É reencontro, mas também reação. Um manifesto contra a perda de variedade cultural na música e um convite ao abraço coletivo que a canção raiz ainda é capaz de proporcionar. Ao regravar faixas como Sabiá (composição de Luiz Gonzaga e Zé Dantas), Dona da Minha Cabeça (Geraldo Azevedo e Fausto Nilo) e A Natureza das Coisas (Accioly Neto), a pernambucana oferece versões que respeitam a tradição, mas arriscam novos caminhos. “O forró sempre teve, para mim, essa ideia de união. Quando a gente escuta forró, a gente quer estar junto. É sobre dançar, compartilhar, abraçar. Isso diz muito sobre quem somos”, opina.
Atravessando a ponte entre o regional e o universal, Joyce reuniu nomes como Santanna, o Cantador, Petrúcio Amorim, Zeca Baleiro, Mariana Aydar, Lucy Alves e Chico César. Essas trocas, diz ela, mostraram o poder da música atemporal. “Quando se fala de amor ou da vida com profundidade, isso não morre nunca”, enfatiza.
O álbum também traz a autoral Proibido Notícia, parceria com o potiguar Dorgival Dantas. “Escrevi essa música pensando nele, na esperança de que ele quisesse cantar comigo. Se ele não aceitasse, eu não saberia quem convidar”, revela. A presença do cantor no disco reforça a conexão com a linhagem do forró romântico e lírico que tanto inspira Joyce. Para ela, Dorgival (autor de Coração, hit da banda Aviões do Forró) é mestre em dar densidade à simplicidade, alguém que transforma o cotidiano em poesia sonora sem recorrer a artifícios ou modismos.
Joyce também reflete com espírito crítico sobre os caminhos do forró contemporâneo e suas fusões com outros gêneros. “O forró dialoga hoje com a MPB, o pop, a eletrônica, o que é natural. Mas é preciso cuidado para que essa riqueza não se perca. Infelizmente, nem todo mundo consegue equilibrar essa mistura respeitando as raízes”, diz ela, que integra uma geração que não teme inovar, mas tem consciência da responsabilidade. “A gente precisa preservar elementos da nossa cultura que são inegociáveis. As letras poéticas, o sentimento coletivo, a memória da comunidade. Isso precisa sobreviver, mesmo dentro de novas propostas”, defende.
Encontros que moldam
Ao longo de sua caminhada, Joyce Alane teve encontros que ajudaram a moldar seu estilo e ampliar seu alcance. Em agosto de 2024, a convite da diva Simone, dividiu o palco do Teatro Guararapes com a cantora, numa das noites mais marcantes de sua trajetória. “Foi uma honra imensa. Simone é uma referência afetiva e artística. Cantar ao lado dela foi um daqueles momentos que a gente guarda para sempre”. A artista também tem uma história de colaboração com Tiago Iorc que extrapola bastidores: já abriu shows do cantor, incluindo apresentações da turnê Desamô. “Aprendi muito observando Tiago no palco. Ele tem uma escuta generosa e um cuidado com cada detalhe”, reflete.
Com João Gomes, a relação veio de um tempo em que ambos estavam dando seus primeiros passos em direção ao mercado musical. O encontro artístico aconteceu em 2023, quando Joyce o convidou para gravar uma nova versão de sua música Idiota Raiz, que já havia ganhado repercussão nas redes sociais. O convite foi aceito e a gravação entrou para o DVD do cantor, marcando um momento de virada na trajetória da pernambucana.
Ao nomear a própria casa como coração, Joyce mostra que pertencimento não é nostalgia e que tradição não é prisão. “É matéria viva, moldável, capaz de dialogar com o agora sem se dissolver nele”, declara. Ao final da audição do novo álbum, Joyce espera que fique algo para muito além do ouvido. “Quero que levem para a vida a ideia de não esquecer de onde vieram. De que é possível criar coisas novas sem abrir mão das nossas origens”.