Publicação: 04/08/2014 03:00
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Millôr Fernandes nunca foi uma pessoa comum. A começar pelo nome. Por engano do escrivão do cartório onde foi registrado, em vez de Milton a certidão saiu com Millôr grafado. Ele só descobriu quando era rapaz. E nada fez. Afinal, desde os 15 anos já trabalhava em jornais e nada melhor que um nome único para se destacar. Até morrer em 2012, aos 88 anos, Millôr passaria pelas principais publicações brasileiras e seria fundador de uma delas, o mítico O Pasquim, o mais aguerrido e divertido veículo alternativo da época da ditadura militar. Millôr, de erro da certidão, se tornou marca valiosa.
Nascido no Bairro do Méier, no Rio de Janeiro, em 1923, Millôr foi autodidata. Jornalismo, literatura, desenho, teatro, inglês, francês, espanhol, cinema e música popular – pelo menos. Em cada arte, deixou obras que se organizam em 30 livros e muitas dezenas de traduções, sem falar no acervo de mais de 8 mil itens, hoje depositado no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.
O Millôr mais conhecido é, sem dúvida, o jornalista que ocupou páginas de revistas e jornais, como O Cruzeiro, a partir dos anos 1940, Jornal do Brasil e Veja, com trabalhos que mesclavam texto e ilustração, poemas e desenhos, pequenas crônicas e caricaturas. Um jeito pessoal de fazer jornalismo, em que a notícia, a reflexão, o comentário e a poesia se mesclavam, gerando uma obra única.
Em sua obra, também se destacam livros de poesia e textos em prosa e peças de teatro de grande sucesso, como É, Computa, computador, computa, Um elefante no caos, Homem do princípio ao fim e Os órfãos de Jânio.
Homenageado Festa Literária de Paraty (Flip), encerrada ontem, Millôr ganha reedição de quatro trabalhos e uma coletânea de frases e desenhos. Para um artista e intelectual que estampou suas criações no cada vez mais volátil suporte da imprensa, é uma oportunidade de resgate e avaliação de seu legado literário e plástico, fora da provocação momentosa dos dias que passam.
+ As obras
E os carolas?
Um dos livros mais comentados e menos conhecidos de Millôr, já que está esgotado há muitos anos, Esta é a verdadeira história do paraíso saiu originalmente em 1963 nas páginas de O Cruzeiro, a mais lida publicação brasileira da época. A história nasceu de um programa que ele comandava na TV em Belo Horizonte. Um dia, recontou a mais conhecida história da humanidade, o livro do Gênesis, com a habitual ironia. Os “carolas do interior” chiaram. Passados 50 anos, a história ainda mantém a graça e a irreverência. A Companhia das Letras convidou quadrinistas para apresentar versões da história.
Pif Paf
A seção se chamava Pif Paf e era assinada por um tal de Emmanuel Vão Gogo. Era uma das mais populares da revista O Cruzeiro. Fez tanto sucesso que em 1949, o verdadeiro autor, Millôr, decidiu reunir as melhores páginas duplas em livro. Nascia Tempo e contratempo. É, ao mesmo tempo, homenagem e sacanagem com Van Gogh e filósofo canônico, Emmanuel Kant. O material honrava tanto a arte quanto a filosofia do cotidiano, uma das especialidades do multiartista. Nada escapa à pena do escritor, da onda psicanalítica ao comportamento em restaurantes, das grandes descobertas da humanidade à higiene do corpo.
Seleção de craques
Millôr foi um grande escritor que desenhava ou um artista que sabia escrever? O livro Millôr 100+100 – Desenhos e frases não ajuda a responder à pergunta. A seleção é de Sergio Augusto e a escolha dos desenhos ficou a cargo de Cássio Loredano. O resultado pode ser pessoal, mas tem tudo para agradar aos admiradores de Millôr Fernandes, já que os responsáveis entendem do riscado e foram argutos para captar vários níveis da arte do multiartista. A edição é bonita e, na medida do possível, propõe o diálogo entre palavras e imagens.
Literal
Tradutor experimentado do inglês, o humorista decidiu mostrar de uma só vez que ninguém sabe nada da língua e, ao mesmo tempo, acha que sabe tudo. Tascou logo um antimanual de tradução que reúne cerca de 600 frases comuns e expressões idiomáticas, que são vertidas palavra por palavra, gerando uma versão tão literal como absurda. Uma espécie de edição bilíngue para quem quer desaprender os dois idiomas. “Afogar o ganso” é to drown the goose; “botar as manguinhas de fora” vira to put little mangos outside…