Sangra, coração Banda Ave Sangria, um dos mitos da música pernambucana, ressurge em discos e show com remanescentes da formação que tocou na última apresentação, há 40 anos

Pedro Siqueira
Especial para o Diario
pedrosiqueira.pe@dabr.com.br

Publicação: 31/08/2014 03:00

Da esquerda para a direita: Agrício, Ivinho, Almir, Paulo Rafael e Marco Polo. Em pé, Israel (GREG SOBRE FOTO ACERVO PESSOAL/ALMIR DE OLIVEIRA)
Da esquerda para a direita: Agrício, Ivinho, Almir, Paulo Rafael e Marco Polo. Em pé, Israel


O cenário é o Recife. A época, os anos 1970. O país amargava os chamados “anos de chumbo” da ditadura militar, com músicas e discos censurados a todo momento. A cena cultural, apesar do fértil período Tropicalista, ainda sofria com o exílio de dois maiores nomes, Gilberto Gil e Caetano Veloso. A era de conflitos propiciou o surgimento de uma nova geração da música no Brasil, com Secos & Molhados, Raul Seixas, e uma banda recifense que se tornaria objeto de culto por décadas: Ave Sangria. Em 1974, os integrantes do grupo fizeram dois shows memoráveis no Teatro de Santa Isabel - a despedida frente à perseguição imposta pelo regime militar. Quarenta anos depois, quatro membros da formação original voltarão a subir no mesmo palco, na terça-feira, para rememorar a apresentação Perfumes y baratchos. Os ingressos  chegaram ao fim em menos de 24 horas.

“Acho impressionante que nossa mensagem ainda fale para as gerações mais jovens. Isso me dá a certeza de que fizemos um trabalho bem feito”, diz Marco Polo. A apresentação deve seguir o mesmo tom da de 1974, quando houve até tentativas dos fãs de invadir o teatro. A banda tinha apenas dois anos - criada em 1972 sob o nome Tamarineira Village com Marco Polo, jornalista e poeta interessado em se tornar músico, Almir de Oliveira e Ivson Wanderley (Ivinho), saídos de Os Selvagens para se aventurar no rock psicodélico. “O jovem não tinha muita escolha. Ou virava militante na luta comunista, ou pagava de alienado conformista, ou ia para o underground. Fui para o undergound”, conta Marco. Ao grupo, juntaram-se Paulo Rafael (guitarra), Israel Semente Proibida (bateria) e Agrício Noya (percussão). Paulo tinha participado da Phetus, com Lailson, Zé da Flauta e Frei Tito. Todos dispostos a peitar o sistema, via “contracultura”.

 (AVE SANGRIA/ARQUIVO PESSOAL)
O início foi duro. Marco Polo admite ter usado jogadas de marketing para promover a banda. “Eles usam batom!” e “Eles se beijam na boca!” eram comentários típicos da plateia nos shows do Ave nos anos 1970. “Era mesmo pra chocar. Era uma época de muita repressão, então gostávamos de escandalizar mesmo. Israel, nosso baterista, era muito agitado. Quando ele gostava de alguma coisa, vinha e dava um selinho em mim, e pensei em levar pro palco!”.

Após o sucesso no Recife, o Ave foi convidado pela Continental a gravar um disco no Rio de Janeiro. Até então, os álbuns dos psicodélicos pernambucanos, como o Satwa, de Lula Côrtes e Lailson, eram gravados pela Rozenblit, empresa local. Era a primeira investida das grandes gravadoras no jovem rock nacional. Era a vez de Raul, Novos Baianos, Secos & Molhados e, claro, Ave Sangria. A viagem, porém, não correspondeu às expectativas. Prejudicada pela inexperiência em estúdio, a banda gravou o primeiro e único LP Ave Sangria em uma semana. Um disco sem a potência sonora dos shows ao vivo. Mesmo assim, emplacou um hit nacional, Seu Waldir.

A canção, no entanto, foi proibida de tocar nas rádios. E as autoridades determinaram o recolhimento dos LPs. Censores enxergaram nela versos “depravados”, um atentado aos “bons costumes”. O autor da letra, Marco Polo, cantava sobre um tal de Waldir, por quem estaria apaixonado: “Eu quero ser o seu brinquedo favorito / Sua camisa de cetim”. Anos depois, explicou que o personagem nem existia e era uma brincadeira. A censura foi um baque forte para a banda, que estava na estrada. O disco proibido chegou a ser relançado meses depois, sem Seu Waldir, mas o clima já não era mais ou mesmo. Os membros da banda tomaram, aos poucos, caminhos distintos, até que, naturalmente, veio o fim depois das duas noites de dezembro de 1974, no Santa Isabel.

 (AVE SANGRIA/ARQUIVO PESSOAL)
Há 40 anos, euforia definia a emoção do público no Santa Isabel. O cartaz (acima), feito pelo cartunista Lailson, dava o tom do espetáculo, “Prepare-se que o seu coração vai sangrar”. Na gravação pirata do áudio, é possível ouvir Marco Polo pedindo aos porteiros do teatro que liberem a entrada de quem ficou de fora. No repertório, músicas como Geórgia, a carniceira e Hei! Man deixaram os fãs ensandecidos. “Somos jovens, e urbanos, crescemos vendo TV e ouvindo os Beatles. Mesmo que não quiséssemos, não poderíamos negar esta realidade entranhada em nossa carne”, dizia a mensagem da banda reproduzida em matéria do Diario de Pernambuco de dezembro de 1974.

O show da próxima terça-feira será marcado pelo relançamento em CD e LP do único disco do grupo, além do áudio de Perfumes y baratchos, de 1974. A remasterização ficou por conta da Anjo Gabriel, com o selo Ripohlandya. “Tentamos mexer o mínimo possível no original. Nossa missão era trazer um documento histórico do que foi o Ave à época”. Subirão ao palco os originais Marco Polo (vocal), Paulo Rafael (guitarra), Almir Oliveira (violão) e Ivinho (guitarra), auxiliados por Juliano Holanda (baixo) e Do Jarro (bateria). Ao ser perguntado sobre o que esperar do novo show, Marco Polo repete a frase: “Prepare-se, que o seu coração vai sangrar”.

Serviço

Show do Ave Sangria e relançamentos de CD e LP
Onde: Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, Santo Antônio), terça-feira, às 19h. Ingressos esgotados.
Discos: CD e LP Ave Sangria (R$ 24,90 e R$ 70), CD e LP Perfumes y baratchos (R$ 24,90 e R$ 70). À venda na loja Passa Disco (Parnamirim). Fone: 3268-0888

Antes e depois

Da formação original do Ave Sangria, Israel faleceu e Agrício tem paradeiro desconhecido. Os demais eram e ficaram assim:

Marco Polo vocal

 (REPRODUÇÃO DA INTERNET/FACEBOOK)
ONTEM
Na época da banda, Marco Polo já era jornalista e poeta. Declarava­se um jovem curioso e antenado com o que acontecia no mundo. Era contra a ditadura militar em vigor no país. Não se identificava com a luta armada de guerrilheiros ligados a facções políticas da oposição e decidiu que a música seria a ferramenta contra o regime.

HOJE
Após o fim da banda, Marco Polo enveredou pelo jornalismo, ocasionalmente voltando aos palcos em apresentações especiais, como o show Pirata solitário, apresentado em 2011 no Teatro de Santa Isabel, que contava com músicos da nova cena pernambucana interpretando clássicos do Ave Sangria. Atualmente, é diretor e coordenador da divisão de livros da editora Cepe, onde também foi editor da revista Continente.

Paulo Rafael guitarra

ONTEM
Considerado um dos melhores guitarristas de seu tempo, Paulo entrou para o Ave Sangria após participar da Phetus, com Lailson, Zé da Flauta e Frei Tito. Era companheiro de Ivinho nas guitarras e foi dele parte do peso instrumental de composições como Geórgia, a carniceira.

HOJE
Após o fim do Ave Sangria, Paulo entrou para a banda de apoio do cantor pernambucano Alceu Valença, da qual até hoje é guitarrista. Tem também uma extensa carreira como produtor, sendo responsável pelo DVD Ao vivo no Marco Zero, de Alceu, gravado em 2006 para um público de 100 mil pessoas.

 (AGRESTE ROCK/DIVULGAÇÃO)
Ivson Wanderley guitarra

ONTEM
Talvez o melhor instrumentista do grupo, entrou na banda junto com Almir Oliveira (baixo), de quem é amigo de infância. Apaixonado pela guitarra, foi o compositor de um dos temas instrumentais do LP do Ave Sangria, Sob o Sol de Satã. Nela, tocou quase todos os instrumentos, com exceção da bateria, gravada por Israel Semente Proibida.

HOJE
Foi convidado para integrar a banda de Alceu Valença, mas logo se afastou. Como artista solo, foi o primeiro brasileiro a se apresentar no Festival de Montreux, na Suíça, 1978, templo do jazz , em show que acabou virando disco. Em entrevista ao Viver, em janeiro, se preparava para voltar aos palcos com a banda Anjo Gabriel. O público elogiou a performance do músico, e os companheiros de banda afirmam que ele está tocando melhor do que nunca.

Almir de Oliveira baixo

ONTEM
Amigo de infância de Ivinho, cursava engenharia quando entrou para a banda. Inicialmente apenas baixista, logo começou a compor. São de autoria dele músicas como Dois navegantes.

HOJE
 Após o fim da banda, Almir se afastou profissionalmente da música, voltando aos palcos somente em apresentações especiais, incluindo alguns festivais em 2011. Atualmente, trabalha na Secretaria de Administração da Prefeitura de Olinda.

Faixa a faixa

Comentamos, com a ajudinha providencial de músicos do estado, as músicas presentes no disco Ave Sangria

Dois navegantes
“Essa música é uma das mais belas do disco. Foi composta por Almir, que à época começava a se aventurar pelas composições. A poesia, se você reparar bem, é belíssima.” (por Zé da Flauta)

 (ALCIONE FERREIRA/DP/D.A PRESS)
Lá fora
“Já essa é de Marco Polo. Acho que é uma música muito íntima, diz bastante sobre quem ele é.” (por Zé da Flauta)

Três margaridas
Composição psicodélica, o som das violas lembra bastante os Beatles da era Sgt. Pepper’s.

O pirata
Um dos sucessos do disco, a letra tem um certo tom melancólico. Muitos afirmam que esta é uma das mais belas canções do Ave.

Momento na praça
“Paisagens sonoras, é a mais lisérgica. A melodia e a letra têm clima de sonho e viagem psicodeliciosa.” (por JuveNil Silva)

Cidade grande
“Poética urbana, saudosa, começa bem mansa, meio folk barroco e tem aquele groovie triunfante no final com solo de rock feroz de Ivinho e grito derradeiro de terror no fim. Maior barato.” (por JuveNil Silva)

Seu Waldir
“É uma grande brincadeira, uma piada de Marco Polo. Mas parece que as pessoas não levaram tão bem assim, tanto que foi censurada”. (por Zé da Flauta)

Hei! Man
“Essa música foi uma das que apresentamos de forma diferente no show de 1974. Israel, nosso baterista, teimou para que a tocássemos em ritmo de maracatu. Tentamos, e deu certo!” (por Almir de Oliveira)

 (REPRODUÇÃO DA INTERNET/FACEBOOK)
Por quê?
“A bicha estoura com um boggie anos 1950 depois se transporta prum marasmo calmo e me lembra muito a melodia de La belle de jour que Alceu fez depois. ‘Por que, iê iê? Hahaha... Nada de novo no fronte?’” (por JuveNil Silva)

Corpo em chamas
“A manifestação de doido doído de amor, a letra tem uma pegada bem de crônica mórbida. A música mais pesada e selvagem deles tinindo durante todo o desespero que é essa canção fulminante.” (por JuveNil Silva)

Geórgia, a carniceira
“É um rock pesado, agressivo, mas sem perder o lado psicodélico da banda. Foi regravada pelo Querosene Jacaré no primeiro disco deles, que eu produzi em 1998”. (por Zé da Flauta)

Sob o Sol de Satã
A última faixa do disco é um espetáculo de virtuosismo de Ivinho. Além dos solos de guitarra, ele ainda toca todos os intrumentos, exceto a bateria, executada por Israel Semente Proibida. 

Análise

“É importante refletir que, no momento em que surge o Ave Sangria, Pernambuco vê nascer o que viria a se chamar “udigrudi”. Lailson, Lula Côrtes, Flaviola, esses músicos todos começaram a produzir seus discos, o que, na época, era uma grande conquista. O Brasil vivia os anos de chumbo da ditadura, especialmente com o decreto do AI­5, em 1968. Discos e músicas eram muito censurados. Esses artistas, incluindo o Ave, tentaram difundir uma perspectiva mais experimental da arte. Era a “contracultura”, uma forma dos jovens de se rebelar contra o sistema repressivo da época. O motivo para a aura alternativa em torno do Ave é o fato de o disco ter sido censurado. A faixa Seu Waldir, que nada mais era do que uma brincadeira, escandalizou a sociedade e gerou reações negativas, culminando na proibição da execução da canção. Após esse fato, o Ave Sangria sofre o impacto da censura e acaba se separando. Eles vinham em um bom momento da carreira, o disco vendia bem, mas a censura acabou sendo um choque para todos, não havia como continuar. Penso que a grande importância não só do Ave, mas de toda essa geração setentista, é justamente o fato de usar a música como algo construtivo, explorando novas sonoridades. Essa coisa de misturar ritmos locais e internacionais que o pessoal do manguebeat fez, o Ave Sangria já fazia bem antes. Mas é importante destacar, o Ave não tinha regionalismos, eles tinham influências dos sons nordestinos, mas a cabeça estava sempre pensando além.”

Paulo Marcondes
Doutor e professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

A música ‘livre e pesada’ do Ave Sangria além de ter influenciado meu gosto musical e jeito de tocar, influencia até hoje bandas e músicos da cena pernambucana.”
Matheus Bispo, 20 anos, estudante e músico

Sempre fui fã da banda desde os anos 1970. Conheci e tive contato com eles. Espero ir ao show do reencontro no Teatro de Santa Isabel.”
Paulo Bispo, 59 anos, professor e pai de Matheus