Fellipe Torres
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Publicação: 22/09/2014 03:00
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Roberto Beltrão destaca interesse dos pernambucanos nas temáticas do além |
Recife, fim do século 19. Como toda figura ilustre da sociedade, o médico Dornelas se vestia de maneira elegante. Por ser negro, era vítima recorrente de preconceito, sempre tachado de petulante. Certo dia, alguém cuspiu em sua cartola. Então, somente de olhar a saliva da agressora, disse: “Coitada da iaiá! Tuberculosa. Não tem um ano de vida”. E de fato a mulher viria a morrer. Dali em diante, doutor Dornelas passou a ser visto como alguém com poderes sobrenaturais. Depois de morto, tornou-se o espírito mais invocado nas sessões da Irmandade do Santíssimo Sacramento, centro espírita da época.
Narrado por Gilberto Freyre em 1955, no livro Assombrações do Recife velho, o causo pernambucano é resgatado pela historiadora carioca Mary del Priore em Do outro lado – A história do sobrenatural e do espiritismo (Planeta, 208 páginas, R$ 31,90), onde são reconstituídas as mais diversas crenças de contato com os mortos. Astrólogos, videntes, médiuns, cartomantes, exorcistas, curandeiros e outras figuras com supostas habilidades fantásticas têm a origem e a popularização investigadas. Para del Priore, a crença no fantástico está relacionada à compreensão do mundo, a uma certa compensação das injustiças do cotidiano e ao acolhimento dos desejos do povo.
Muito antes do episódio do médico Dornelas, a atmosfera pernambucana já flertava com a vida após a morte. Em 1845, estudantes da Faculdade de Direito do Recife criaram a “Filopança”, sociedade que organizava orgias inspiradas na literatura mórbida e romântica de Lord Byron. Esses rituais anteciparam certa “febre mística” da década de 1860, quando pessoas se reuniam em torno de mesas redondas para se comunicar com os espíritos.
Contribuía com esse imaginário coletivo uma série de fatores intrínsecos à época. Temas ligados à morte eram explorados em pinturas, esculturas, peças de teatro. O avanço da ciência, com o uso aperfeiçoado da eletricidade, da química, da ótica, a invenção do telégrafo e do próprio telefone instigaram a crença no “além”. Mas não era um modismo. A busca pelo sobrenatural resiste ao tempo, ao menos por aqui, onde ainda hoje habitam lobisomens, pernas cabeludas e papas-figos.
Serviço
Do outro lado – A história do sobrenatural e do espiritismo,
de Mary del Priore
Editora: Planeta
Páginas: 208
Preço: R$ 31,90
Assombrações comentadas
Papa-Figo
“É uma história ancestral, lembrada até pelas gerações mais recentes. Está muito ligada à distribuição de renda no estado. É a história de um cara rico, doente, que contrata alguém para sequestrar e matar crianças, para ele comer o fígado. Tem a ver com a estrutura do poder.”
Comadre Flozinha
“Temos a tendência de encarar como uma história rural, mas em todas as escolas que vou, públicas ou particulares, ricas ou pobres, encontro alunos que conhecem e têm medo dela”.
Lobisomem
“A origem se confunde um pouco com o folclore brasileiro como um todo, mas volta e meia há casos de aparição de lobisomem em Pernambuco, em municípios como Gravatá, Canhotinho... Em 2004, houve um caso no Recife, no bairro da Madalena. Em 2012, outro em Jaboatão dos Guararapes. As pessoas realmente acreditam”.
Perna Cabeluda
“É uma assombração totalmente bizarra, sem paralelos na história. Assim como o maracatu, deveria ser um patrimônio imaterial de Pernambuco (risos). Não chega a ser classificada como lenda. É um boato dos anos 1970, mas que até hoje repercute. O curioso é que foi gerado na mídia, provavelmente no rádio e no jornal, ao invés de surgir no imaginário do povo”.
Entrevista: Roberto Beltrão
Há 15 anos, o jornalista pernambucano Roberto Beltrão se tornou caçador de histórias sobrenaturais. Editor do site O Recife assombrado (orecifeassombrado.com) desde 2000, é autor de três livros e uma história em quadrinhos sobre o assunto. Até o fim do ano, lança o Almanaque de mal-assombros, causos e lorotas, escrito em parceria com a folclorista Rúbia Lóssio.
Quando começou o interesse por assombrações?
Surgiu na década de 1990, quando um amigo me apresentou Assombrações do Recife velho, na época fora de catálogo. Fiquei fascinado com aquilo. Já conhecia a obra de Gilberto Freyre, Casa-Grande & senzala, Sobrados & mucambos, mas não aquilo. Descobri que aquelas histórias foram baseadas em pesquisa feita nos anos 1920, quando Gilberto trabalhava em jornal e pediu para o repórter Oscar Melo fazer uma série de reportagens sobre o tema. Por muito tempo, assombração era assunto de jornal, de caderno de polícia. Tive percepção que havia muitas histórias que faltavam ser contadas, como a da Perna Cabeluda, dos anos 1970.
Pernambuco tem vocação especial para o sobrenatural?
Sim, o imaginário popular daqui é muito forte. Há farta bibliografia sobre este assunto, como o estudo feito pelo folclorista Pereira da Costa. Quando passamos a interagir com as pessoas pelo site, muitas nos contavam histórias, tanto as tradicionais quanto algumas assombrações particulares. Costumo fazer palestras e sempre ouço novos causos. É um assunto incrível. Quanto mais você mexe, mais coisa aparece.
Obras
421-424 Cuidado com os mortos, de Santo Agostinho
1600 Tratado da aparição dos espíritos, de Nicolas Taillepied
1608 Discursos de espectros,
ou visões e aparições,
de Pierre Le Loyer
1749 Arcanos celestes,
de Emanuel Swedenborg
1751 Dissertação sobre
mortos-vivos, Augustin Calmet
1813 História do magnetismo animal, de Joseph François Deleuze
1854 Arcanos da vida futura desvendados, de Louis-Alphonse Cahagnet
1857 O livro dos espíritos,
de Allan Kardec
1873 Histórias da meia-noite,
de Machado de Assis
1881 Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
1896 Tratado do hipnotismo,
de Francisco Fajardo
1911 Carta de um defunto rico, de Lima Barreto
1955 Assombrações do Recife velho, de Gilberto Freyre
2002 Histórias medonhas
d'O Recife assombrado,
de Roberto Beltrão
2007 Estranhos mistérios
d'O Recife assombrado,
de Roberto Beltrão
2010 Malassombramentos –
Os arquivos secretos d’O Recife assombrado, vários autores
2013 Na escuridão das brenhas, de Roberto Beltrão
2014 Histórias em quadrinhos d’O Recife assombrado,
de André Balaio e Roberto Beltrão