É tudo forró? No fim de semana do aniversário de nascimento de Luiz Gonzaga, o Viver dá voz a dois estudos sobre a controvertida polarização entre o forró tradicional, associado ao Rei do Baião, e o estilizado, propalado pelas bandas nordestinas

Júlio Cavani
juliocavani.pe@dabr.com.br

Publicação: 14/12/2014 03:00

No mundo da música nordestina, existem dois grupos que não se misturam mas se consideram representantes de um mesmo gênero musical, o forró. De um lado, estão os que dizem proteger as tradições. Do outro, estão aqueles agrupados sob rótulos como “estilizado”, “eletrônico” ou outras expressões mais pejorativas. A discussão foi retomada no meio acadêmico em 2014 por causa da tese de doutorado Forró desordeiro, defendida por Climério de Oliveira, e do livro No Ceará não tem disso não, lançado por Felipe Trotta, músicos-pesquisadores que defendem visões diferentes sobre o tema.

“Para além da bipolarização pé de serra versus eletrônico” é o subtítulo da tese de Climério, defendida em maio na UniRio-RJ. “É uma questão de preconceito de classe, que incide contra a diversidade musical da região Nordeste. É um jogo de interesses”, acredita o recém-doutor. Segundo ele, essas categorizações impedem um debate mais aprofundado que revele, inclusive, as semelhanças entre os dois fenômenos culturais. Ele mostra que existe uma generalização. “A profusão de bandas é tão grande que não cabe em uma única definição. É um meio diversificado. Os cinco grupos que mais fazem sucesso atualmente são bastante diferentes entre si”, constata o pesquisador, que também é autor do livro Forró: A codificação de Luiz Gonzaga, lançado em 2014 - os 102 anos de nascimento do Rei do Baião foram comemorados neste sábado, dia 13 de dezembro.

Ele revela também que o próprio forró de artistas ligados à tradição, como Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, também envolveu uma série de elementos que coincidem com os “estilizados”, tanto nos arranjos modernos quanto nas temáticas das letras. Ao mesmo tempo, analisa cantores que fazem experimentações ousadas, como Silvério Pessoa, Geraldinho Lins, Dorgival Dantas e Josildo Sá, mas que não sofrem o preconceito enfrentado pela “supermegaforce das powerrangers bands”, como ironiza em trecho da tese. Na década de 1970, por exemplo, o cantor Oswaldinho do Acordeon tocava acompanhado de teclados moog (um símbolo da música eletrônica internacional) e lançou um disco chamado Forró pop (1977).

Mastruz com Leite éumexemplo dos sucessos do forró estilizado criado por Emanoel Gurgel na década de 1990 (ANDRE LUFRAMAIA/FORROZAO PROMOCOES/DIVULGAÇÃO)
Mastruz com Leite éumexemplo dos sucessos do forró estilizado criado por Emanoel Gurgel na década de 1990


Climério identificou que, em algumas dessas bandas recentes, “os metais substituem o jogo de foles”, mas a estrutura musical permanece dentro do forró enquanto gênero. Ao mesmo tempo, há casos onde “a sanfona continua como um elemento mais ornamental, como um símbolo do forró, um signo visual. Nenhuma conseguiu tirar o sanfoneiro, até porque deixariam de ser contratadas por prefeituras que promovem shows no são joão”.

O que fica mais evidente (sobretudo nas bandas de sucesso mais recente) é uma influência de astros da música pop internacional, como Michael Jackson, Madonna, Britney Spears e Beyoncé, manifestada principalmente na formatação dos shows como espetáculos tecnológicos com dançarinos (recursos já bastante incorporados por forrozeiros mais associados à tradição). Há ainda os vocais melosos no estilo das duplas sertanejas da geração posterior à de Chitãozinho & Xororó (e mais recentemente do chamado “sertanejo universitário”).

O certo é que as divisões interferem sobre o que o povo ouve. Apesar de parte do público não estar preocupada com as separações, elas estão materializadas, por exemplo, nas diferenças entre a programação de São João do Recife (onde o “estilizado” não sobe aos palcos) e de cidades do interior (onde o “eletrônico” predomina), assim como na programação das rádios. Climério acha que isso precisaria ser debatido sem preconceitos, mas as polarizações impedem.

Registro de show da Mastruz em 1995 (ARQUIVO/DP)
Registro de show da Mastruz em 1995

Identidade atualizada

No livro No Ceará não tem disso não: Nordestinidade e macheza no forró contemporâneo, o músico e pesquisador Felipe Trotta traça um panorama das questões que atravessam as diferenças entre forrozeiros tradicionalistas e modernos. Um dos principais temas é a questão do machismo nas letras, mas o autor evita generalizações e mostra que problemas como a vulgarização da mulher não é exclusividade das novas gerações de bandas. Trotta investiga aspectos musicais, estéticos, comportamentais e mercadológicos, com um capítulo dedicado às festas de são joão. Outro tema é questão da identidade nordestina, que não estaria enfraquecida, mas atualizada para um contexto contemporâneo mais cosmopolita e urbano.

O livro não se concentra no forró cearense. Por ter sido o centro irradiador da nova onda de bandas “estilizadas”, o estado é mencionado como metonímia do fenômeno. Climério é um dos autores mais citados (Trotta foi orientador dele no doutorado da UniRio). Apesar de baseado na separação entre o estilizado e o pé de serra, o livro demonstra preocupação de não diferenciar demais as coisas, com ressalvas e resgates históricos que evitam maniqueísmos. Em relação ao machismo, por exemplo, cita versos cantados por Santanna (“Ana Maria tinha dono e eu não sabia”) e Luiz Gonzaga: “Rosinha se encontra numa função decorativa”, observa o pesquisador sobre Asa branca e A volta da asa branca. “Se optarmos por uma reflexão menos metaforizada, Rosinha é a antagonista que é condenada a ficar no inferno.”

Inventores de uma era

Marina Simões
marinasimoes.pe@dabr.com.br

Dançarinas são uma das marcas do Aviões do Forró (ROBERTO RAMOS/AQUI PE/D.A PRESS)
Dançarinas são uma das marcas do Aviões do Forró
Dois empresários cearenses são os responsáveis pelas reviravoltas no mercado forrozeiro. Cada um com época e limitações distintas. O primeiro é Emanoel Gurgel, 61 anos, criador do forró “estilizado”, no início na década de 1990, e fundador da banda Mastruz com Leite e dos outros grupos que vieram em seguida: Cavalo de Pau, Mel com Terra, Catuaba com Amendoim, Balaio de Gato, Calango Aceso. O segundo, é Isaias Duarte, 39 anos, que criou empresa A3 Entretenimento, a partir dos anos 2000, e estreou novo formato de gestão das bandas-empresas de forró. Ele é o nome por trás do Aviões do Forró, Solteirões do Forró, Dorgival Dantas, Forró dos Plays, Forró do Muído.

Na chamada primeira geração do estilizado, o ritmo estava em fase de projeção nacional. De 1995 a 2000, Emanoel Gurgel controlava toda a cadeia produtiva do forró. Era dono do sistema SomZoom Sat, com mais de 100 rádios espalhadas pelo Brasil, estúdio de gravação, editora, fábrica e distribuidora de CDs. E dominava as casas de shows de Fortaleza, além de ser proprietário das lucrativas bandas-empresas. “As bandas trabalhavam com cachê pré-fixado”, conta Gurgel. Com a explosão da pirataria nos anos 2000, a venda de discos no país entrou em queda e arrastou os grupos de forró. Foi aí que surgiu outro nome, o Isaias CDs, que observou as carências da época e abriu uma empresa no prédio onde funcionava a SomZoom. “Trabalhei como zelador durante cinco anos e fiz café para o Emanoel Gurgel. Entrei na empresa, começei limpando o chão, e hoje sou dono. É uma bênção de Deus”, diz. 

Duas perguntas Emanoel Gurgel da primeira geração

 

Como surgiram as bandas e o estilo na década de 1990?
Eu gostava de dançar forró. Antigamente eram comuns as bandas de baile. Mas tocavam quatro ou cinco músicas de forró. Percebi que o salão ficava lotado e quis criar uma só de forró. Fui conversar com uns amigos da BlackBanda, e eles acharam brega tocar forró. Então acertei com a Aquarius, mas coloquei músicos com cabeça da Blackbanda. Não funcionou. Pensei: vou pegar pessoas humildes, que não tenham vergonha. E foi assim que surgiu a Mastruz. O baterista trabalhava com material de construção, o baixista era de uma padaria, o cantor, “catador de osso”. Kátia Cilene venceu um concurso para vocalista aos 15 anos.

Você acredita que esse forró seja autêntico?
Existem as coisas artesanais e as feitas industrialmente. Nunca o folclore vai deixar de existir. Mas é preciso haver evolução. Existem dois tipos de forró, o de Luiz Gonzaga para trás e o de Emanoel Gurgel para frente. Mas a evolução é parte natural da vida. A zabumba, o triângulo e a sanfona não atraíam público. Tenho atividades comerciais, não sou artista, sou dono da empresa e tenho a mercadoria chamada música. Uma obra de arte também pode ser um negócio. O forró é um ritmo que permite variações, se misturou com a salsa, com ritmos do Rio Grande do Sul, o vaneirão, mais recentemente com o sertanejo. O forró estilizado sobrevive porque tem melodia, letra, são músicas que dão no pé e no coração. 

Duas perguntas Isaias Duarte da segunda geração

Quais as mudanças eram necesárias em relação as bandas-empresas?
Todo mundo se imitava. O som era muito regional, precisava mudar a metaleira e teclado. As meninas não eram tão bonitas e mal se vestiam. Hoje digo para elas se vestirem como quem vai ao shopping, com maquiagem leve e roupa bonita. Ser patricinha no palco, não ser vulgar e, sim, sensual. E todas as bandas estão se adequando a esse modelo que criamos aqui. Passamos a conduzir os artistas para que se apresentassem como estrelas.

Como recebe as críticas dos defensores do “forró tradicional”?
Essas pessoas não percebem que o mercado mudou e elas não acompanharam. Há muitos artistas do gênero que são bons e não evoluíram. De Luiz Gongaza pra cá tudo mudou. A população é outra. O forró vem crescendo porque acompanha a evolução do mercado. Nas letras, na pegada, no som, na quantidade de público. Colocamos 30 mil pessoas para assistir a uma banda. E o forró não chegou em 60% do potencial que tem. Vamos chegar para o mundo todo. Artistas como Elba Ramalho, Alcymar Monteiro, Flávio José, Waldonys, se renovam sempre. Mas se eles quebrassem a barreira contra a gente, de achar que não é verdadeiro o forró que fazemos, iriam mais longe. Respeito esses artistas e acho que também deveriam respeitar o forró de hoje. Pois se fosse depender só deles, ninguém escutava mais. Dominguinhos gostava de elogiar muito o Aviões, e ser elogiado por ele, é o mesmo que receber o aval do finado Luiz Gonzaga

Opinião

Sou a favor da convivência. Circulo bem tanto entre os estilizados quanto entre os mestres. Consigo transitar. Apesar de usarem o nome forró, eles são diferentes. Cada um ocupa um lugar. As críticas nem sempre são construtivas, pois precisamos de mais união. Se houver respeito nos dois lados, não vejo problema. Em relação à produção, tem coisas do forró estilizado que o pé de serra poderia imitar para ser menos discriminado”.
Geraldinho Lins, cantor

Nos anos 1990, o forró ficou mais leve, passou adotar o lado urbano. Falava-se muito de amor. À época, Mastruz com Leite e outras bandas de Emanoel Gurgel gravaram músicas minhas como Tareco e Mariola, Anjo querubim, Meu Cenário, Cidade grande e Filho do dono. Foi aí que entendi o que eram dirietos autorais, passei a receber 1000% e toquei em todo o Brasil. Mas a música é cíclica, nada é para sempre. Essas músicas descartáveis do forró atual não têm perspectiva de ficar na história”
Petrúcio Amorim, compositor pernambucano.

Todo mundo é forró. Não existe acabar nem um nem outro. Foram feitas mudanças necessárias para que pudesse ter visibilidade no Brasil inteiro e não só no mês junino. Os que os forrozeiros mais antigos não entendem é que, se não fosse pelo forró eletrônico, eles não trabalhariam o ano todo. Dizer que está degradando a cultura é uma inverdade. A crítica já não cabe no formato.  Como iria modernizar tudinho e não mudar nada em termos musicais? Tivemos que acompanhar a evolução. A diferença está na linguagem”
Jósimo Costa, empresário
e produtor do forró
das antigas.

Das antigas

O projeto batizado de Forró das Antigas, criado há cinco anos, uniu as bandas Mastruz com Leite (CE-SomZoom), Magníficos (PB- Luan Promoções) e Limão com Mel (PE-Talismã), em turnê conjunta pelo Nordeste. A festa circula pelas principais capitais, com edições no Rio de Janeiro e São Paulo, e tem mais de 350 shows. O diferencial, segundo o empresário e produtor Jósimo Costa, são as canções de vaquejada, o forró agitado e o romantismo, em seis horas de forró. “O projeto abriu possibilidades. Deu uma alavancada em todas as bandas do gênero”. A próxima edição no Recife será em 9 de maio de 2015, no Chevrolet Hall.