Um Recife que virou passarela
Cansado de ver a sua cidade desfilar roupas que não lhe cabiam, o estilista Eduardo Ferreira criou sua própria moda inspirada no manguebeat, tornando-se um dos representantes do movimento
Allan Lopes
Publicação: 05/07/2025 03:00
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As grandes capitais da moda são quase sempre as mesmas: Paris, Milão, Londres e Nova York. Mas, nos anos 1990, o Recife também entrou na rota. O responsável foi Eduardo Ferreira, estilista que mostrou ser possível criar aqui uma passarela tão potente quanto as internacionais, só que carregada de tradições e símbolos pernambucanos. Assim nasceu o “mangue fashion”, inspirado pela mesma rebeldia estética e social que transformou o manguebeat em um movimento cultural dos mais importantes.
Mas a relação de Eduardo com a estética e a cultura popular vem de muito antes, ainda nas memórias de infância. Mesmo sendo analfabeta, sua mãe, Eulina Amâncio, costurava enxovais inteiros. Assim, ele descobriu que os tecidos e as cores também eram formas de contar quem se é — e de onde se vem.
Do Recife, ele partiu para o Rio de Janeiro, onde fez estágio na TV Globo, no seriado Armação Ilimitada, dirigido por Guel Arraes, e assinou figurinos da novela Carmem, da Rede Manchete, estrelada por Lucélia Santos. Por razões familiares, retornou à cidade natal e trabalhou com Beto Kelner por quatro anos, período em que aprendeu todas as etapas de confecção e produção de desfiles. Mas, depois de assistir a um dos primeiros shows de Chico Science & Nação Zumbi, pediu demissão. “Eu vi, naquela mistura do moderno com a tradição, a síntese do que eu queria para a minha roupa”, frisa.
Na tentativa de criar sua própria linguagem, Eduardo também queria vestir o Recife, suas cores, tradições e símbolos, em cada peça. “Nas coleções realizadas aqui, havia muita cópia do que vinha da Europa. Muitas vezes, as roupas nem combinavam com o nosso clima”, relembra. Foi desse incômodo que surgiu o “mangue fashion”, um vestuário autoral que ia além dos figurinos de Chico ou da forma como a juventude se vestia na época, marcada pelas influências grunge e do streetwear.
Após conquistar espaço nas principais revistas de moda do Brasil e do mundo e desfilar em eventos de peso como o Phytoervas Fashion (embrião da São Paulo Fashion Week), Eduardo passou a ser visto como parte do movimento manguebeat, um rótulo com o qual ele não concorda. “Qualquer estilista que tivesse o privilégio de nascer e conviver no Recife, naquele exato momento, inevitavelmente levaria a efervescência toda para o seu trabalho. E foi isso que eu fiz”, explica.
Ele criou algumas peças para Chico Science, que tiveram grande repercussão e chegaram, inclusive, às páginas do The New York Times. Os dois – já amigos próximos – haviam marcado um almoço para o dia seguinte ao fatídico 2 de fevereiro de 1997, data da morte do cantor. “Sentia que estava conquistando a confiança dele, porque sempre levei a moda para além da estética, como expressão de cultura e identidade. E isso, aos poucos, estava sendo reconhecido”, destaca Eduardo, que também trabalhou com outros nomes da cena, como Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio e Cannibal. Até hoje, segue colaborando com artistas da música, entre eles Almério.
Fiel à sua trajetória, Eduardo lançou recentemente a coleção Samba do Godê Pavão, criada em parceria com o Samba de Coco Raízes de Arcoverde, unindo referências da cultura indígena e do cotidiano.“Minha leitura de moda nunca foi voltada para o comércio. É sobre cultura, sobre o reflexo da arte e, principalmente, sobre trazer benefícios para todos. Fazer com que a sociedade cresça através da moda”, reforça. Desse modo, enquanto a indústria fabrica tendências, Eduardo cria legados.