Central do Nordeste Há quase duas décadas, um distrito da região se tornou cenário para a produção de um dos filmes mais prestigiados do país. O Viver tomou a estrada para revisitar personagens cujas vidas se cruzaram com Central do Brasil

Vinícius de Brito
Especial para o DIARIO
viniciusdebrito.pe@dabr.com.br

Publicação: 25/01/2015 03:00

Uma gente de sotaque chiado disparava flashes por um lugar ermo do mapa brasileiro. O endereço é a encruzilhada da BR-232 com a PE-101, quase parada obrigatória dos forasteiros, mais conhecida como Cruzeiro do Nordeste - vilarejo nos arredores de Sertânia, município a 280 quilômetros do Recife. Ali, o roteiro de Central do Brasil, pensado pelo diretor Walter Salles, encontrou-se com as casinhas estreitas e abençoadas pelas mãos da estátua de “Padim” Padre Cícero. “Cruzeiro do Nordeste foi escolhida depois de percorrermos cerca de 10 mil quilômetros entre Bahia, Ceará e Pernambuco. Nos encantamos pela cidade, a geografia, as casinhas e a gente”, diz, hoje, a produtora da película, Elisa Tolomelli. No final de janeiro de 1997, aquele pedaço de Pernambuco iria se “travestir” de Bom Jesus do Norte, nome fictício de um dos longas brasileiros com maior projeção internacional - e o único do país a ser indicado ao Oscar em duas categorias fortes: melhor filme estrangeiro e melhor atriz.

Em uma viagem sem compromisso com efemérides, o Viver tomou a estrada para encontrar cidadãos cujas vidas se misturaram às filmagens do longa-metragem. Há 18 anos, o dono do único posto de gasolina local se descobriu cinegrafista e registrou um dos poucos making ofs não autorizados das gravações, um menino pobre virou guardião de Walter Salles, a diretora da escola municipal foi alçada à produção do longa, uma jovem professora começava a carreira duradoura de atriz e uma mulher que jamais tinha ido ao cinema contracenou com a dama da dramaturgia Fernanda Montenegro. Os cinco moravam no distrito quando foram gravadas as últimas em Pernambuco, em fevereiro de 1997. Dois anos mais tarde, mordiam os lábios de apreensão quando o filme concorreu (e perdeu) em Hollywood.
A exposição internacional rendeu transformações à fictícia Bom Jesus do Norte. Vieram a água tratada nas torneiras e o calçamento no lugar da lama abundante de duas décadas atrás. O vilarejo, chamado Placas nos idos de 1960, quase homenageou o filme em uma proposta feita para rebatizá-lo - a ideia nunca vingou na Câmara de Vereadores de Sertânia. Da belle époque das filmagens, restou a lembrança: o cenário envelheceu, as montagens e objetos do longa se perderam e a rodoviária local - onde uma turba de figurantes rezou ao lado de Dora e Josué, personagens do filme - foi abaixo após rachar. A agência dos Correios do distrito, inaugurada dois anos após o filme e um dos elementos vitais para ilustrar a troca de cartas no enredo de Central do Brasil, permaneceu desativada por anos e só retomou as atividades em 2013. Um projeto para criar um memorial sobre as gravações adormeceu nas gavetas do Executivo local - a prefeitura silenciou ao ser indagada pelo Viver.
O percalço dos desafios sociais contrasta com a movimentação sob holofotes da época das filmagens, quando a população de quase sete centenas de pessoas acolheu por um mês carretas de equipamento e a equipe de produção do longa. A cenografia incluiu a criação de igreja, casa dos milagres, agência dos Correios e cabelereiro. “Montamos o cenário da festa, com inúmeras barraquinhas, usando mão de obra local. E a romaria foi composta por todos os habitantes de Cruzeiro do Nordeste e de pessoas vindas de cidades vizinhas. Eram 800 pessoas que trabalharam três noites inteiras como se fossem atores profissionais”, recorda a produtora Elisa Tolomelli.
O enredo do filme caiu em Cruzeiro do Nordeste como luva para representar o drama regional de famílias separadas por precariedade e falta de acesso aos serviços básicos de cidadania. No longa, Fernanda Montenegro é a escritora de cartas Dora, que guia o menino Josué (Vinícius de Oliveira) até a cidade do pai, no Nordeste. Os dois se conhecem na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, onde a mãe do menino pede a ela que envie uma carta ao esposo. Dias depois, a mulher morre, e a criança é levada pela escrevedora ao encontro da família em Bom Jesus do Norte. A história brilhou em festivais pelo mundo, obteve bilheteria de US$ 22,4 milhões e atraiu cinco milhões de espectadores. O valor de Central do Brasil, porém, não ficou restrito a público e prêmios. Os atores de primeira viagem, os figurantes e os ajudantes de Cruzeiro do Nordeste e das redondezas “tatuaram” a história do longa na pele.

Os prêmios

Cinema 100 Melhor Roteiro
Sundance, EUA, 1996
Urso de Ouro Melhor Filme
Berlim, Alemanha, 1998
Urso de Prata Melhor Atriz
Berlim, Alemanha, 1998
MelhorFilme Júri Ecumênico
Berlim, Alemanha, 1998
Melhor Filme Público
San Sebastian, Espanha, 1998
Melhor Filme Estrangeiro
Hollywood Foreign Press,
EUA 1999
Crítica Melhor Atriz
Fort Lauderdale, EUA, 1998
Público Sarlat
França, 1998
Júri Especial Melhor Filme
Havana, Cuba, 1998
Melhor Ator Jovem
Havana, Cuba, 1998
Melhor Filme 
Cartagena, Colômbia, 1999
Indicação Filme Estrangeiro
Oscar, EUA, 1999
Indicação de Melhor Atriz
Oscar, EUA, 1999
Melhor Filme Estrangeiro
Cesar, França, 1999
Melhor Filme Estrangeiro
BAFTA, 1999

carta Para mainha
Wanderlucy Bezerra vira a cabeça para quem a chama assim (Wan-der-lu-cy) há décadas. “Quem acha que meu nome artístico deve mudar para Lucy Bezerra?” - perguntou, na internet, em busca de um novo nome desde 2014. O nome de batismo dado pela mãe despontou nos créditos de Central do Brasil, filme de estreia. Antes, a sertaneja de Arcoverde passou pelos palcos do Rio, para onde foi aos 21 anos. Voltou ao Nordeste após a morte da mãe, para cuidar do pai. O filme ganhou significado especial. “O papel em si seria escrever carta para mainha”, recorda.
No filme, ela dita para a personagem de Dora (Montenegro) uma corresponência verídica em homenagem à mãe. Central abriu-lhe as portas das artes cênicas. “Aguçou minha vontade de fazer cinema, teatro. Fiz Baixio das bestas, Árido movie”. Voltou ao Rio. Participou de 5 vezes favela, agora por nós mesmos, O duelo e Divã 2 (2014). A agenda cheia ecoa um desejo da infância, quando “lavava prato, varria casa e simulava a participação em uma novela. 

cameraman do backs
Homem do mato, vaqueiro no tempo livre, proprietário de um posto de gasolina à época de filme. Em 1997, “esqueceu” o trabalho, viajou a Arcoverde e desembolsou R$ 1.100 por uma câmera de vídeo. A razão para o rompante: registrar a transformação de Cruzeiro do Nordeste em uma locação de Central do Brasil. “Era tudo muito novo. Eu sentia que filmavam umas coisas, mas achava que a produção do filme ia levar aquilo tudo e ninguém tinha nada registrado. Foi aí eu saí roubando as imagens”, recorda. Elias driblou seguranças, furou bloqueio em ruas, usou a porta dos fundos das casas de conhecidos para gravar. “Fiz Fernanda Montenegro comendo tapioca com moradores locais na feira”.
Em 1997, o filho de vaqueiro temia transformação do lugarejo em uma “Bom Jesus de verdade”. E lamenta o descaso do tempo. “Para a gente foi ótimo em termos de divulgação. Mas em termos econômicos, não foi muita coisa, não”. As imagens gravadas repousam em VHS. Do filme, ficou a ousadia cinematográfica

A escritora
A realidade de Vânia Lúcia Freire, hoje, são os muros do colégio onde trabalha como diretora. Há 18 anos, varria a calçada de um posto de saúde da vila quando viu um homem de fala estranha se aproximar. “Fui a última a conhecer o pessoal de Central. Um italiano chamado Zé Luiz entrou no posto e me anunciou como a ‘ponte’ do filme. Eu concordei”. Vânia entrou na coprodução de elenco, com a responsabilidade de pagar os figurantes e “catar” os “não atores” da região. “Mas eu nunca soube como ele chegou a mim”.
O convite a introduziu no mundo do cinema. Até hoje, ela recorda da “intimidade” com Fernanda Montenegro. Ela também se aproximava da personagem Dora porque escrever cartas tinha sido o primeiro ofício aprendido. “Pediram-me para escrever uma carta e mandar a uma rádio pedindo uma cama”. Em Cruzeiro do Nordete, 18% da população é analfabeta - a taxa era de 24% há 18 anos. Vânia virou professora. “Ganhei experiência e a amizade do povo”, orgulha-se. 

sem o oscar
Aquele princípio do ano de 1997 trouxera alguém novo à porta de dona Tereza: “A mim, ele (o produtor de casting) disse: ‘Vou botar você pra trabalhar: olhe, essa cena que a gente vai fazer aqui é como se você estivesse brigando com Fernanda Montenegro, porque você viu o que ela fez e não gostou. Aí você bota o dedo no buço e faça pra ela: ‘psiu!’”.
Para ela, o trabalho trouxe o primeiro ganho fora do ambiente doméstico. Colocou no bolso mais de R$ 20, por dois dias de atuação. Analfabeta (“eu faço meu nome muito ruinzinho”), dona Tereza foi casada com seu Oscar, com quem teve nove filhas. “Plantava milho, feijão, palma; limpava mato”. Conta que um amigo sempre a para na rua: “olha Dona Tereza! A senhora é atriz, aparece brigando com Fernanda Montenegro, né?”
O “psiu” levou Tereza à Alemanha, Espanha, EUA e ao Oscar que concorreu junto com o elenco da produção, em 1998. Cinco anos depois, foi a vez de assistir à perda do Oscar que amou durante 30 anos para uma doença do coração.

escolhido de walter
Homem com barba a fazer, roupa colorida e folgada no couro, Fred Francisco dos Santos, 29 anos,  tem encarnado o cheiro de combustível do Posto Cruzeiro, ganha-pão desde os 11. Ali, há 18 anos, viu uma gente estranha, de sotaque esquisito, chegando ao povoado: “Tiraram foto, deram um dinheiro à gente e foram embora”, recorda. Em 1997, “veio o comboio” para transformar o distrito em Bom Jesus do Norte.

Fred começou a ajudar nos bastidores, por “20 contos por dia”. Três dias depois, Walter Salles o escolheu: “agora, você só vai ficar andando comigo”, diz. Foi aí que conheceu e virou amigo de Vinicius de Oliveira, o menino protagonista, que o ensinou a usar os múltiplos talheres nas futuras visitas ao Rio, destino anual entre 1998 e 2009. Com ajuda financeira do cineasta, fez quatro períodos de economia na Unicap, desistiu, voltou à terra natal e se graduou em matemática em Arcoverde, “mas não é a mesma coisa”. Hoje, está no mesmo lugar e estuda para concurso.