Deu samba Enredos históricos de escolas ultrapassam desfile, viram trilha obrigatória nos carnavais e agora são reunidos em livro

Fellipe Torres
fellipetorres.pe@dabr.com.br

Publicação: 11/02/2015 03:00

Publicação é assinada pelo jornalista Marcello de Mello, que pesquisou livros e jornais, além de entrevistar compositores e carnavalescos (ESCOLAS DE SAMBA/DIVULGAÇÃO)
Publicação é assinada pelo jornalista Marcello de Mello, que pesquisou livros e jornais, além de entrevistar compositores e carnavalescos

Vez ou outra, a rivalidade entre as escolas de samba é preciso ser colocada de lado para dar espaço a enredos históricos. Afinal, em festas e ensaios, ainda hoje são ouvidos refrãos como “Explode coração,/ na maior felicidade...” ou “É hoje o dia da alegria/ e a tristeza nem pode chegar”. Isso porque os versos entoados pelo Salgueiro no desfile de 1993 e pela União da Ilha, em 1982, foram além da passarela, transcenderam a avenida e se tornaram hinos do carnaval. Essas e outras 13 músicas norteiam o livro O enredo do meu samba, escrito pelo jornalista carioca Marcello de Mello, jurado do Estandarte de Ouro há mais de 20 anos.

Depois de entrevistar compositores e carnavalescos, pesquisar em jornais, revistas e livros, o autor elegeu e recolheu informações de bastidores sobre os sambas-enredo mais representativos entre 1964 e 1993. Para ele, a ausência de canções mais recentes se justifica pela falta de grandes composições nos desfiles dos últimos anos. “O carnaval do Rio de Janeiro se diz o maior espetáculo audiovisual da Terra. A parte visual está muito bem contemplada, mas no que refere ao samba, não existe mais a mesma força”. Como exemplo do enfraquecimento da sonoridade das escolas, Marcelo de Mello cita as frequentes reedições de enredos históricos (fenômeno frequente de 2004 para cá). “Se isso acontece, é porque não há produção empolgante”.

Na opinião do jornalista, um dos motivos para a baixa popularidade dos sambas mais recentes é a inevitável disputa com outros gêneros, como axé music e funk. Também por questões financeiras, as escolas acabam se submetendo a patrocinadores cuja reivindicação é colocar o próprio negócio como tema do desfile. “Tivemos casos graves, como quando uma indústria de laticínios motivou um enredo sobre iogurte. Imagine como é para um compositor quando recebe a sinopse? Como diz o ditado, algumas coisas dão e outras não dão samba”.

Sobre o fato de a Prefeitura do Recife ter contribuído com R$ 3 milhões para o desfile de 2008 da Mangueira, sobre o frevo, o pesquisador enxerga com naturalidade. “Estar alinhado a objetivos de determinados governos nunca foi fator impeditivo para grandes sambas. A cultura de Pernambuco dá muito samba. O problema é quando prefeituras de cidade sem grande expressão cultural pagam para ser enredo”.

 

 

Serviço

O enredo do meu samba,
de Marcello de Mello
Editora Record, 308 páginas, R$ 32

 

 

 

Históricos

 

Explode coração, Salgueiro (1993)

“Explode coração
Na maior felicidade (bis)
É lindo o meu Salgueiro
Contagiando, sacudindo essa cidade”

O refrão é apontado como grande responsável pelo título de campeã após jejum de 17 anos. Antes mesmo do desfile, o público das arquibancadas e camarotes já cantava em coro. Curiosamente, as estrofes do compositor Demá Chagas estavam prontas há muitos anos, apenas esperando a oportunidade de serem usadas.

É hoje, União da Ilha (1982)

“Levei o meu samba
Pra mãe de santo rezar
Contra o mau olhado
Carrego o meu patuá”

Um dos sambas-enredo mais universais da história da Sapucaí, a música ganhou o país também com interpretações de Caetano Veloso e Fernanda Abreu, em forma de samba-funk. Ainda são sinônimos de expressão de felicidade. É considerada uma celebração ao carnaval e se tornou um hino da escola de samba.


Os sertões, da Em Cima da Hora (1976)

“Sertanejo é forte
Supera miséria sem fim
Sertanejo homem forte (bis)
Dizia o Poeta assim
Foi no século passado
No interior da Bahia
O homem revoltado com a sorte
do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia”

O desfile de 1976 foi trágico para a escola de samba, pois somente o abre-alas conseguiu entrar na avenida. Vários nem chegaram a deixar o barracão. Outros carros foram prejudicados por um temporal que caiu sobre a concentração e por vândalos que quebraram as alegorias. O samba, no entanto, entrou para história.

Festa para um rei negro, da Salgueiro (1971)

“O-lê-lê, ô-lá-lá,
pega no ganzê
pega no ganzá.
Senhora dona de casa,
traz seu filho pra cantar
para o rei que vem de longe,
pra poder nos visitar”
Composto por Adil de Paula (Zuzuca), o samba quase foi censurado, pois nos ensaios o povo cantava uma versão “proibida” da letra, com trechos como “Que beleza / A maconha que vem lá do Ceará” e “Pega no ganzê / Bota pra gozar”. Mais tarde, a música foi adaptada por torcedores do Flamengo, do Barcelona e até por manifestantes franceses em 1987. Há versões em mais de 25 países.

Aquarela brasileira, da Império Serrano (1964)

“Fiquei radiante de alegria
quando cheguei na Bahia
Bahia de Castro Alves, do acarajé
das noites de magia do candomblé
Depois de atravessar as matas do Ipu
assisti em Pernambuco
a festa do frevo e do maracatu”

Em 1964, o autor de Aquarela do Brasil, Ary Barroso, morreu horas antes de a Império Serrano entrar na avenida com o samba-enredo de temática semelhante. O samba foi regravado por Martinho da Vila, Elza Soares, Dudu Nobre, Zeca Pagodinho e reeditado pela escola no carnaval de 2004.