Entre memórias e fantasias Em "Lispectorante", filme estrelado por Marcélia Cartaxo, a realidade encontra a imaginação através do universo poético de Clarice Lispector

André Guerra

Publicação: 08/05/2025 03:00

 (EMBAÚBA FILMES/DIVULGAÇÃO)

As memórias do Recife, do bairro da Boa Vista e de Clarice Lispector se entrelaçam pela nostalgia visualmente radiante de Lispectorante, novo longa da diretora pernambucana Renata Pinheiro (de Açúcar e Carro Rei), que entra em cartaz nesta quinta na cidade em que foi concebido, após rodagens prestigiadas no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

A atriz paraibana Marcélia Cartaxo recebe aqui uma oportunidade única de explorar não apenas a sua luminosidade inerente, mas também uma significativa sensualidade. Na trama, ela interpreta Glória Hartman, uma artista que volta à capital pernambucana a algumas semanas do carnaval para tentar se estabelecer novamente e, quando menos espera, conhece uma pessoa que balança seu coração. Ao descobrir uma fenda na casa em ruínas onde a escritora Clarice Lispector morou, a realidade e a fantasia começam a se confundir.

Roteiro escrito pela própria Renata em parceria com Sérgio Oliveira, seu marido, Lispectorante %u2013 que ainda traz no elenco nomes como Clara Pinheiro, filha do casal revelada em O Som ao Redor, Pedro Wagner, Brenda Lígia, Gheuza e Karina Buhr %u2013 percorre alguns dos cenários mais célebres do centro, revelando fantasmas ocultos, não apenas de Clarice, mas também de figuras icônicas do imaginário brasileiro, como o físico recifense Mário Schenberg e a cantora Carmen Miranda, que frequentou várias vezes o icônico Hotel Central.

A Praça Maciel Pinheiro, onde a maior parte da trama se desenrola, é filmada em cores vívidas, que tanto explicitam a energia pulsante que existe e resiste na parte histórica do Recife quanto demonstram seu estado de decadência. A presença da ucraniana Clarice, que viveu dos 5 anos até a adolescência na cidade e está eternizada no local por uma escultura de Demétrio Albuquerque, permeia a obra como o símbolo principal desse passado, funcionado sobretudo como mote poético de esperança no futuro.

Considerada a primeira mulher a dirigir um longa de ficção no Recife com Amor, Plástico e Barulho (2013), Renata Pinheiro conta em entrevista exclusiva ao Viver que queria mostrar o bairro da Boa Vista através do regresso da protagonista. "É um filme pós-pandemia, que representa a sensação de retorno a este cenário pela visão saudosa, mas cheia de vida, de alguém que tem toda uma nostalgia do que ele já foi", pontua a cineasta. "Essa mulher de 60 anos simboliza a própria cidade, desde seu lado mais melancólico e abandonado até a sua energia jovial, que se reinventa, que vive e que é desejada".

Costurando diferentes tempos com passagens enigmáticas que remetem a uma distopia (participação pontual da atriz mineira Grace Passô), Lispectorante abraça várias camadas de imaginação de Glória Hartman, menos com uma intenção de desenvolver um grande conflito em torno dela e mais em busca de positividade.

"Eu queria trabalhar com uma temporalidade cíclica, que represente como aquele bairro vive simultaneamente todas as décadas", destaca Renata. "Acho que as pessoas buscam demais pela fácil compreensão da arte. Lispectorante articula um lado mais sensitivo e intrigante do Recife. É a minha cidade, então me dei a liberdade de mostrá-la sem seguir tendências realistas mais duras do cinema contemporâneo. O filme é parte de um todo maior da minha obra, com muito orgulho". E o resultado, repleto de memórias e fantasias, é para se orgulhar mesmo.