É na tora em Peixinhos Bandas independentes driblam a carência de ajuda pública e usam a música para ressuscitar o Nascedouro, espaço simbólico da cena mangue

Larissa Lins
larissalins.pe@dabr.com.br

Publicação: 09/04/2016 03:00

“Foi tudo feito na marra, na raça, na tora”, explica um dos músicos envolvidos no Festival Natora de Bandas Independentes, marcado para hoje, a partir das 16h, na Praça da Caixa D’Água, em Peixinhos. Luiz Carlos, o Ciço, se refere à expressão popular associada a algo realizado forçosamente. Entende bem o significado. Com outros artistas da periferia olindense, ele arrastava os equipamentos musicais pelo bairro de Peixinhos em cima de carroça emprestada por moradores, no início dos anos 2000, a fim de ofertar música gratuita à comunidade e dar vitrine à produção independente local. Conservava o sentimento propagado nos anos 1990 pela geração mangue, enraizada naquele mesmo cenário: faça você mesmo. Ciço e os colegas tocaram em ruas, avenidas, becos. Gestaram o coletivo Natora, hoje formado por mais de 60 bandas e artistas autônomos da Região Metropolitana do Recife. No festival desta tarde, celebram a primeira coletânea gravada em estúdio, com participação dos poetas Oriosvaldo Almeida e Alexandre Batista, mais oito bandas locais.
“A partir de instrumentos reaproveitados e aparelhos derivados da reciclagem, organizamos estúdio caseiro na casa de um amigo, na Rua do Jiriquiti. Ensaiávamos nesse espaço, onde coletamos gravações caseiras e montamos, faixa a faixa, a primeira coletânea Natora, há dois anos”, conta Ciço - responsável por agrupar, neste ano, as bandas participantes do primeiro disco de estúdio, gravado no Peixe Sonoro, adendo do Centro Tecnológico da Cultura Digital (CTCD), erguido no Nascedouro de Peixinhos. Capim Santo, Colírio Elétrico, Soulraízes, Amperes e Kamikazi Killers, grupos oriundos da safra criativa acalentada na última década, se apresentam na Praça da Caixa D’Água, alternativa ao teatro montado na Refinaria Multicultural Nascedouro de Peixinhos - hoje em desuso, segundo os músicos, em função da má conservação. “Os cupins estão corroendo o palco. O local serve de depósito para móveis descartados de cinemas e teatros inativos no estado. Uma pena”, declara Ciço, guitarrista e vocalista da Capim Santo.
O Natora, segundo os músicos mais experientes, mistura ideologias da cena mangue e do movimento cultural Boca do Lixo, ambos eregidos nos anos 1990. Paulo Guimarães, vocalista da Colírio Elétrico, credita à nova cena um êxito menos explorado pelas duas primeiras: estende a bairros adjacentes a movimentação artística de Peixinhos. “Ampliamos a dimensão da cena, deixamos o gueto. Recebemos grupos de Beberibe, San Martin e outras localidades. Os músicos são independentes, vêm de periferias. Queremos manter essa intersecção entre os artistas em formato de festival, na nossa comunidade. O local é emblemático, ícones como a banda Lamento Negro e o mangueboy Chico Science beberam nessa fonte”, explica Paulo.
A Colírio Elétrico, assim como o poeta Oriosvaldo e a Fantasmas, grava neste semestre o primeiro álbum da carreira, também no estúdio Peixe Sonoro, criado com aporte do governo do estado em 2011 e subsidiado, hoje, pelos serviços prestados a preços populares. “É um estúdio popular. Cobramos R$ 50 por hora de gravação, o equivalente a um terço do valor cobrado pelos grandes estúdios”, explica Selma Leite, gestora do Centro Tecnológico de Cultura Digital. Para ela, a cena cultural no entorno do Nascedouro de Peixinhos passa por fase de reaglutinação. “A movimentação da cena Natora reúne bandas de toda a RMR. Nos últimos meses, muitos nos procuram para gravar material inédito. São artistas com anos de carreira, sem nada gravado formalmente. O momento é de registro, organização”, opina.

 

 

Serviço

Natora Festival de Bandas Independentes
Quando: hoje, às 16h
Onde: Praça da Caixa D’água (Rua 1º de Janeiro, S/N - Peixinhos)
Quanto: entrada gratuita

 

 

 

[ Providências

 

Segundo a Secretaria de Cultura do Recife, há uma parceria entre a pasta e a Secretaria de Desenvolvimento e Empreendedorismo destinada a desenvolver projeto para o Nascedouro de Peixinhos, mas sem previsão de data para início das reformas.

 

 

[ Entrevista Luiz Carlos, Ciço //  um dos organizadores do Natora

 

“Nós herdamos o ‘faça você mesmo’”

 

Qual o panorama atual da movimentação artística em torno do Nascedouro de Peixinhos? Quais os gêneros musicais predominantes na cena promovida pelo Natora?
O rock ainda é o gênero predominante. Mas há influências do mangue, do reggae, de gêneros afins. A ideia do coletivo é promover intercâmbio entre bandas de todos os bairros próximos ao Nascedouro de Peixinhos. Ou, ainda, entre grupos oriundos de outros bairros da RMR, com afinidade artística com o Natora. Os investimentos e a organização são coletivos, fazemos por conta própria, na tora. Há organizações semelhantes em outras periferias. Herdamos o “faça você mesmo” de correntes como o movimento mangue e o Boca do Lixo. Nos reunimos regularmente na Biblioteca Multicultural do Nascedouro de Peixinhos, onde definimos as bandas que participarão dos próximos shows e coletâneas. A partir dessa primeira coletânea de estúdio, gravaremos outros álbuns, sempre com novas bandas.

Podemos inferir, pelo nome do festival, que o coletivo enfrenta dificuldades para se manter. Quais os principais desafios?
Nossa principal dificuldade é o desinteresse do poder público. Há locações em descaso na comunidade de Peixinhos. O Centro Tecnológico, onde ocorrem as gravações, é o único em pleno funcionamento, em condições adequadas. O teatro da Refinaria Multicultural Nascedouro de Peixinhos está em desuso. Fechado, depredado, transformado em depósito de lixo. Serve de depósito para cadeiras velhas, móveis descartados de outros aparelhos culturais. Por isso, nos apresentamos na Praça da Caixa D’Água, em palco montado próximo à sede da Lamento Negro, onde os moradores da comunidade se reúnem para ver os shows independentes. Levamos a música diretamente à comunidade, contornando o descaso que acomete as instalações públicas.