Limite da arte (ou a falta dele) Caso marcante de uma adolescente violentada no Rio de Janeiro reacende debate sobre a cultura do estupro, o machismo e a forma como as mulheres são tratadas em manifestações artísticas

Breno Pessoa
Especial para o Diario
edviver.pe@dabr.com.br

Publicação: 05/06/2016 03:00

É da parcela masculina da população a principal responsabilidade sobre a perpetuação de práticas e costumes que oprimem, silenciam, violentam e exploram mulheres. Do comercial machista da cerveja à pornografia convencional, muito do material consumido no dia a dia tem marcas, profundas ou não, de uma relação perversa com o sexo feminino. Casos como o recente estupro coletivo de uma adolescente carioca reacendem o debate sobre o tema e geram também inúmeras expressões resultantes dessa cultura, incluindo aí culpabilização da vítima, ofensas, objetificação feminina e relativização do crime. As reações não surgem ao acaso nem estão apenas na voz de quem se lança a condenar a vítima ou tantas outras que passaram por situação parecida. É um discurso que normaliza a violência sexual e, com um pouco de atenção, pode ser identificado em expressões artísticas provenientes da tevê, música, literatura, do cinema, dos quadrinhos e de outras mídias.
“Cultura do estupro é um contexto social que implica a prática, fomenta e propicia subjetividades estupradoras”, explica Marcia Tiburi, doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não é como se, necessariamente, alguns conteúdos incitassem de maneira direta a violência contra a mulher, mas a forma como o ser feminino é retratado - objetificado e sexualizado - reforça uma visão predominantemente machista.
“A cultura produz um tipo de mentalidade estupradora”, afirma Tiburi, ressaltando que esse raciocínio não isenta de culpa quem pratica violência sexual. “Quando se pondera sobre isso (a cultura favorecer o estupro), não queremos desculpabilizar os indivídios, mas destacar a contribuição que as pessoas, cidadãos comuns, dão para a manutenção dessa cultura”, completa a pesquisadora. “A cultura do estupro está nos lares, nas ruas, nas revistas, na televisão, nos filmes, na linguagem, na publicidade, nas leis. Por isso, todas as esferas da sociedade devem ser mobilizadas para essa transformação”, alertou, nesta semana, um manifesto do Movimento ElesPorElas de Solidariedade da ONU Mulheres pela Igualdade de Gênero.
Marcia Tiburi parte da premissa de que o mundo é patriarcal, organizado numa lógica baseada no ponto de vista masculino. “A violência contra as mulheres é histórica, uma constante. É o machismo estrutural, na forma como a gente fala e como as imagens são construídas”, diz, adicionando que “na grande maioria dos discursos, no cinema, na tevê, literatura, na cultura contemporânea, enfim, se vê a presença sistêmica desse ódio contra as mulheres”.
Uma das expressões mais literais desse ódio é o uso do estupro como recurso narrativo, não raramente retratado de maneira romantizada, apoiado na ideia de que a vítima está gostando ou ansiando por aquilo. A ideia do estupro consentido, por definição já contraditória, parte de uma falsa lógica de que quando uma mulher diz “não”, na verdade, está dizendo “sim”.
Exemplo claro está no primeiro volume da trilogia 50 tons de cinza. Numa das passagens, a protagonista Anastasia é forçada sexualmente pelo par, Christian, que ameaça amarrá-la e continua o ato mesmo após ela pedir que ele pare. Na cena, que não foi mostrada na adaptação para o cinema, a personagem acaba achando a situação sexy.
A ficção é repleta de ocorrências similares. A minissérie Ligações perigosas, exibida pela Globo em 2015, causou controvérsia por uma cena na qual Augusto (Selton Mello) invade o quarto de Cecília (Alice Wegmann) com a desculpa de que iria ajudá-la a escrever uma carta. Após acariciar a garota sem o consentimento dela, ele pede um beijo como condição para ir embora e, na sequência, a estupra.
Algo similar ocorreu na quarta temporada de Game of thrones, quando a personagem Cersei (Lena Headey) foi estuprada, durante o velório do filho, pelo irmão Jaime Lannister (Nikolaj Coster-Waldau). Até então, o casal, que mantém uma relação incestuosa ao longo da série, sempre foi retratado em relações consensuais. O programa e a série de livros que o inspirou ainda apresentam outras passagens retratando violência sexual contra mulheres.
No longa pernambucano Baixio das bestas, de Cláudio Assis, a crueldade machista dá o tom na humilhação imposta às mulheres através de estupro (da personagem interpretada por Dira Paes), espancamento e outras formas de violência e desvalorização da figura feminina, em meio à ruína moral e social de uma sociedade patriarcal na zona canavieira do estado.

Violação literal
A depreciação feminina também toma forma na literatura com a violação do corpo de Tia Guilhermina, uma idosa vítima de estupro coletivo praticado por um grupo de rapazes, no romance Tangolomango, escrito pelo pernambucano Raimundo Carrero. O abuso da personagem sintetiza a dificuldade masculina em respeitar a integridade da mulher quando ela desperta interesse sexual - Tia Guilhermina é apresentada no livro como alguém com a sensualidade à flor da pele, a ponto de fazer um striptease em pleno desfile de carnaval do Galo da Madrugada.
 Roteirista e romancista, Carolina Munhóz, autora de livros de literatura fantástica, abordou o estupro em uma de suas obras. Em Por um toque de ouro, uma jovem sofre tentativa de estupro dentro do banheiro em uma balada. “Quantas mulheres já não se viram em situações assim? Em momentos que você não tem tanto controle sobre o seu corpo e os seus atos, mas percebe que estão tirando vantagem e passando dos limites?”, questiona.

 

 

 

 

[ Violência

 

O caso da vítima do Rio de Janeiro voltou a direcionar a atenção para as letras das músicas de funk, em geral apontadas como composições carregadas de menções de violência às mulheres. A cultura do estupro, no entanto, permeia outros estilos e revela uma aproximação incômoda do cancioneiro com práticas de opressão masculina - seja através do estímulo direto ao abuso, da definição da mulher como objeto sexual, da naturalização da conduta machista. Veja algumas:


Estupro
Com Carinho
Os Cascavelletes

Eu quero te estuprar
Com muito carinho

Te estuprar
Com muito cuidado
Te estuprar
Por causa da dor


Três Amigos
Trio Bravana

Ei, qual é o seu nome
Ela não quis me falar
Perguntei, você tá sozinha?
Tô, só com guaraná
Vi que a coisa tá difícil
Pensei, vou ter que apelar
Vou chamar meus três amigos
Pra poder te conquistar
Tequila, Whisky Vodka
Com esse trio eu sei que vou te pegar


Predador
de perereca
MC Jhey

Espetacular o sorriso dessa princesa
É de impressionar quando arrasto ela pra treta
Não chama as amiga, só ela dá conta
Para três ela senta e mais três ela mama então

Eu, tu, nóis bota nela
O bonde chegou é os predador de perereca
Sapeca pepeca, divide essa tcheca


Pequena Raimunda
(Ramona)
Raimundos

Feia de cara, mas é boa de bunda
Olhe só é a pequena Raimunda
Se ela tá indo até que dá pra enganar
Se ela tá vindo não é bom nem olhar
Ela de quatro fica maravilhosa

 

 

 

 

[ Entrevista Carolina Munhóz  //  escritora

 

“Literatura deve provocar o debate”

 

Cenas de violência sexual na ficção ajudam a perpetuar a cultura do estupro?
Acredito que o entretenimento precisa ser um reflexo de nossa sociedade em todos os aspectos, pois é a nossa melhor ferramenta para se falar sobre assuntos delicados com a grande massa, e nem sempre isso é bem explorado. Precisamos ter personagens assim, mas o importante é mostrarmos o quanto atos e pensamentos envoltos nessas situações são nocivos, para que eles sirvam como exemplo. Autores e criadores precisam entender que o importante é mostrar que isso existe, mas não vangloriar algo assim. Ter um impacto que resulte um debate de pensamentos. Infelizmente, o estupro é parte de nossa sociedade e não falarmos sobre isso em livros, filmes e seriados é esconder algo grave que está enraizado em nossa cultura. Através dessas mídias podemos mudar o mundo e o entendimento de muitas pessoas.

É possível retratar esse tipo de ocorrido sem o traço machista?
Sempre que falarmos de algo como o estupro, a visão machista vai aparecer, mas o importante é ressaltarmos que inúmeros casos assim acontecem também na comunidade LGBT e não só com mulheres heterossexuais. Autores precisam ter a liberdade de mostrar em histórias personagens machistas, entretanto, o machismo precisa ser usado de uma forma em que o leitor/telespectador enxergue claramente a falha de caráter desse personagem e queira ver uma justiça em relação a isso.

Em algumas obras, o estupro é ponto de virada para personagens femininas; elas saem fortalecidas, como se fosse um tipo de provação necessária para seu crescimento. Qual a sua opinião sobre isso?
Esse é o ponto que não concordo na hora de expor esse tipo de assunto na sociedade. Uma personagem feminina não precisa vencer um obstáculo ou crescer como ser humano por ter sofrido uma violência. Quando apresentamos casos de violência, é importante existir uma reflexão do cenário em que se foi colocado e sobre as consequências de um ato violento, mas não necessariamente mostrarmos como uma jornada de superação. Nenhuma mulher ou ser humano precisa de um ato de agressão para se definir como pessoa.

 

 

 

 

[ Pornô feminista

 

Existem movimentos contrários ao pornô convencional, liderados por mulheres. Um dos expoentes é a diretora sueca Erika Lust, da Lust Films, empresa especializa em filmes direcionados ao público feminino. Ex-atriz pornô, a norte-americana Candida Royalle também assumiu a direção e hoje comanda produções para as mulheres. Não necessariamente direcionado ao gênero feminino, o movimento Make love not porn (Faça amor, não pornô), idealizado pela publicitária inglesa Cindy Gallop busca estimular uma prática mais saudável do sexo, diferente do pornô hardcore. A iniciativa levanta a bandeira de igualdade entre os gêneros e de uma prática sexual natural, com respeito e sentimento.

 

 

 

 

Quando o prazer é responsável pela dor

 

Tradicionalmente, a pornografia é feita sob viés masculino: a maioria dos diretores dos filmes é homem, assim como o público-alvo. O estilo hardcore costuma ditar a regra nas produções, guiadas muitas vezes pelos extremos no ato sexual e representando agressividade masculina.
No seu livro Perversão: a forma erótica do ódio (Hedra, R$ 64,90, 384 páginas), o psiquiatra norte-americano Robert Stoller defende que uma dinâmica essencial na pornografia é a hostilidade. “Talvez a diferença mais importante entre a pornografia mais perversa e a menos perversa seja o grau de hostilidade (fantasias de ódio e vingança) que está contido, ou é liberado, na atividade sexual”, escreve.
A existência de gêneros como rape fantasy (fantasia do estupro, numa tradução literal) ou rough sex (sexo agressivo) reforça essa associação sexual com a violência e a perpetuação da mulher como objeto para satisfação do prazer masculino. Nos hentais, as animações eróticas japonesas, também é comum encontrar conteúdos com esse viés: narrativas centradas no estupro são um segmento dessa categoria de vídeos.
“A mulher, na mentalidade machista, não é muito diferente de uma coisa”, acredita a filósofa Marcia Tiburi, destacando que, habitualmente, na pornografia, as mulheres são vistas como mercadoria para o prazer visual masculino. O problema, destaca a pesquisadora, não é a pornografia em si, mas a forma como o gênero feminino é tratado na maioria das produções.
Feminista e integrante do grupo pernambucano Quebrando vidraças, que discute o machismo no cinema e tevê, a montadora de audiovisual Laíse Queiroz acredita que, por ser uma indústria, a pornografia age como tal, buscando sempre quebrar barreiras e trazer novidades para seus consumidores. “A competição entre as empresas do setor, junto a uma visão hegemônica masculina, tem levado aos extremos”, avalia, citando a violência de algumas produções, sobretudo as que envolvem sexo grupal (gangbang).
Outro problema, ela destaca, é que a pornografia também molda hábitos sexuais e desejos dos expectadores. “Quanto mais ela for produzida por mulheres, maiores as chances de trazerem a mulher como pessoa, sujeito ativo, que sente prazer, que deseja, e que não é só um objeto”, finaliza.