CAPíTULO SEIS: O VIAJANTE » Pelas ruas que andei, procurei As andanças de Alceu pelo mundo expandem as memórias de São Bento do Una para além-mar. É o tema da 4ª reportagem da série sobre o setentão

Larissa Lins
larissalins.pe@dabr.com.br

Publicação: 29/06/2016 03:00

O cantor com o ex-empresário no avião durante turnê O pernambucano Alceu em terras lusitanas, uma das residências do cantor, onde compõe poemas e músicas (YANE MONTENEGRO/DIVULGAÇÃO)
O cantor com o ex-empresário no avião durante turnê O pernambucano Alceu em terras lusitanas, uma das residências do cantor, onde compõe poemas e músicas
Se há outros planetas, neles não são produzidos alimentos, nem dejetos. As necessidades físicas são atendidas virtualmente e, as viagens, concluídas por desmaterialização. É o que supõe Alceu Valença, para quem a Terra já não parece tão grande quanto era na infância, ele deitado sobre os gramados de quintais em São Bento do Una, no Agreste pernambucano. Hoje, se divide entre o Rio de Janeiro, onde se radicou nos anos 1970, Olinda e Lisboa, em Portugal. O músico vê - e canta - paralelos entre as três cidades, pontos de apoio do pai de família enquanto o artista estende as raízes pernambucanas pelo mundo, além-mar. “É um paradoxo. Temos uma rotina cheia de novidades! No entanto, as três cidades têm suas convergências e é aí que reside o nosso fascínio”, conta Yanê, que nem sempre acompanha a sorte nômade do marido, a fim de dar atenção ao filho adolescente. Alceu é do mundo, sua arte também.

Nos anos 1970 e 1980, o destino de viajante já se escrevia: nos anos anteriores ao lançamento do LP Mágico (1984), Alceu percorreu a Europa, alugou casa na Holanda, conheceu a França, participou dos festivais de Montreux e Nyon, na Suíça, gravou em estúdios do Velho Continente. A ditadura militar vigente no Brasil o manteve afastado de casa, encorajando a descoberta de novas paisagens e inspirações. “Embarquei com Alceu pela primeira vez em 1982, quando nos apresentamos em Montreux e Nyon. Wagner Tiso, Milton Nascimento e Alceu dividiram a noite dedicada à música brasileira. Foi nosso primeiro show internacional juntos, mas em 1979 já havíamos gravado Saudades de Pernambuco em estúdio parisiense. Em 1984, passamos um tempo na Holanda, gravando Mágico”, lembra Zé da Flauta, que nas últimas semanas publicou 70 fotos com o amigo em seu perfil no Facebook. A homenagem inclui registro da temporada em Amsterdã. As longas cabeleiras dos músicos ao vento, a casa construída sobre o rio se erguendo ao fundo.

“Alceu começou como artista local e seu trabalho foi ganhando proporções. Passou a ser conhecido no Nordeste, depois no Brasil e, por fim, no mundo. A receptividade do público internacional às músicas dele é incrível. Não se trata de um público grisalho, mas massivamente formado por jovens, apreciadores do rock’n’roll. Ele é muito aclamado lá fora”, diz Zé, com quem Alceu dividiu o palco em sua primeira apresentação em Portugal - onde hoje tem residência fixa - em 1984, em show promovido pelo jornal comunista Avante!.

No livro O poeta da madrugada (Chiado, R$ 28), o filho ilustre de São Bento do Una reverencia Olinda nos versos de 7 colinas. Ou seria Lisboa, também formada por sete colinas? Os fios, que são rimas, ligam pontos no globo. P de paixão, outro poema, começou a ser escrito em Porto Alegre (RS) e foi finalizado na cidade de Porto, segunda maior metrópole de Portugal. “Foi de um porto a outro, são paralelos importantes do meu caminho”, brinca o músico, consciente das associações. Os instrumentos musicais, o cachorro Paco, os óculos de sol Ray-Ban e a jaqueta de couro atravessam o oceano Atlântico com Alceu. Em Olinda, o mais afetivo dos lares, guarda fantasias dos carnavais passados, móveis vitorianos, quadros assinados por amigos. No Rio e em Lisboa, endereços entre os quais distribui maior parcela do calendário, leva vida pacata, acompanha a rotina dos filhos, administra agenda de shows. Partir e regressar são verbos frequentes, devem render, em breve, projeto audiovisual dedicado à sua produção artística itinerante, pautado pelas passagens por diferentes coordenadas do globo, com título provisório Metrô da saudade, ideia de Alceu.

Fala, Alceu

Depois de percorrer tantos pontos do globo, o mundo cabe nas mãos de Alceu? As distâncias que pareciam intransponíveis para o menino de São Bento são, agora, trechos curtos?
A gente pensa que o mar é infinito, mas ele vai dar em outra terra. O mundo é grande, mas não infinito. E o mundo gosta do que é feito em Pernambuco. Eu recebi homenagem no Festival Cantos da Maré, na Espanha, me apresentei no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, cantei ciranda na Europa, me apresentei com artistas da [República da] Guiné. O frevo, o baião, o maracatu… Nossos ritmos estão pelo mundo. A música encurtou as distâncias para mim. Mas a verdade, eu acho, é que talvez nem estejamos sozinhos. Talvez exista até outro mundo, outros planetas, onde não precisamos comer ou ir ao banheiro. Os alimentos são virtuais, as viagens são feitas por desmaterialização, você some e reaparece em outro lugar.

Como é ser reconhecido e festejado, mesmo longe?
Eu sou do tempo em que artista não era celebridade. Eu percorria os arredores da minha casa sem que me chamassem, sem que me pedissem selfies. Já pensou? Nem sequer havia celulares para tirar selfies, graças a Deus! (risos). Não havia a mitificação do famoso. A indústria do entretenimento inventou essa coisa de ser famoso. Nos anos 1980, meus frevos tocando a todo momento nas rádios, eu saía pelas ladeiras e brincava carnaval tranquilamente, anonimamente. Pedir foto ou autógrafo era cafona. Mas creio que lido bem com isso, com a exposição. Há dias no carnaval em que troco minha casa em Olinda por um hotel, para poder me deslocar com tranquilidade até os shows. Mas, no dia a dia, cumprimento a vizinhança, quem passa por mim, aqui ou em qualquer lugar. Às vezes, nas ruas da Europa, falam comigo e não sei por que estão me cumprimentando, me esqueço dessa coisa de ser famoso.

Um dia em verso

Pelas ruas que andei
Alceu Valença/Vicente Barreto


Na Madalena revi
teu nome
Na Boa Vista quis
te encontrar
Rua do Sol, da Boa Hora
Rua da Aurora, vou caminhar

Rua das Ninfas, Matriz, Saudade
Da Soledade de
quem passou
Rua Benfica, boa viagem
Na Piedade tanta dor

Pelas ruas que andei, procurei
Procurei, procurei te encontrar
Lê, lê, lê, rê, lê, lê, lê, rê, lê, lê, lê
Lê, lê, lê, rê, lê, lê, lê, rê, lê, lê, lê

E a seguir...

No próximo capítulo, o último da série dedicada a Alceu Valença, o coração bobo é também lutador: defende Pernambuco ao andar, andar, propagando a arte da terra natal de janeiro a janeiro.