Identidade elétrica nordestina Como um trio de álbuns instrumentais lançados em Pernambuco atesta o poder da manifestação da cultura nordestina em arranjos elétricos

Júlio Cavani
juliocavani.pe@dabr.com.br

Publicação: 21/08/2016 03:00

Três discos instrumentais lançados recentemente em Pernambuco reforçam a ideia de que a identidade cultural da música nordestina manifesta-se com força também nos arranjos elétricos. Pelo menos desde a década de 1970, músicos pernambucanos têm desenvolvido uma linguagem própria que expande o alcance de gêneros como o rock e o blues, mais associados a países do Norte. Esse intercâmbio demonstra amadurecimento nos últimos álbuns de Zé da Flauta, de Fred Andrade e da banda Deltas.

O que os torna esteticamente nordestinos não são as letras e nem a presença de instrumentos rústicos ou acústicos, como a zabumba, a sanfona ou a rabeca, que muitas vezes nem chegam a estar presentes nas faixas. Sacrifício pela fé, de Fred Andrade, por exemplo, nem sequer tem percussão, mas é todo formado por músicas que sugerem narrativas e paisagens do interior de Pernambuco. Com Psicoativo, Zé da Flauta assume abertamente que quer ser associado ao rock, o que não o impede de alcançar melodias genuinamente pernambucanas. Já a Deltas faz as raízes e variações do baião se confundirem com origens e ramificações do blues norte-americano.

Não é apenas uma questão simples de mistura. A guitarra elétrica mal tinha chegado ao Brasil na época de Lampião (1898-1938). No entanto, Fred Andrade a transformou em um instrumento perfeito para ilustrar musicalmente a história do cangaceiro no disco instrumental Sacrifício pela fé, lançado no fim de 2015. Sozinho em todas as 17 faixas, sem banda, o guitarrista conseguiu encontrar uma forma de tocar em que a identidade regional está manifestada na estrutura musical em si, “sem emendas”, como ele mesmo explica. “O som é modal, sempre calcado no lance nordestino, mas com um pé no rock, que é e sempre foi minha onda”, diz.

O rock também é a essência de Psicoativo. “Sou um roqueiro assumido. Foi o estilo que eu mais ouvi durante a minha vida inteira”, admite Zé da Flauta. Ao lado de nomes como Lula Côrtes e Alceu Valença e de bandas como a Ave Sangria, o flautista foi um dos músicos fundamentais na construção de um rock autenticamente nordestino a partir dos anos 1970. O novo disco instrumental atualiza, reafirma e dá continuidade ao legado.

“A identidade nordestina está nas melodias. Toda a base do disco é de rock, mas melodicamente é puro Nordeste”, explica Zé, cuja flauta conduz as canções praticamente como uma narradora, enquanto guitarra, teclados e bateria garantem um volumoso cenário sonoro. Para ele, o disco não sugere imagens ou paisagens, “apenas na terceira música, por causa da participação de Naná Vasconcelos”.

Zé da Flauta não se incomoda e até gosta de ser associado à década de 1970: “O rock que me influenciou foi o rock dos anos 1970, quando o rock era rock. Depois começou um período muito comercial. O rock dos anos 1970 é o que me empolga.” O guitarrista Paulo Rafael, que toca com Zé da Flauta desde aquela época, faz participações especiais em Psicoativo. Outros convidados são o percussionista Gilú Amaral e os tecladistas Márcio Lo Miranda e Tovinho, além de Naná.

Os discos

Álbum Psicoativo, de Zé da Flauta. Independente. Disponibilizado gratuitamente no YouTube.

CD de Sacrifício pela fé, de Frend Andrade. 17 faixas. Independente.
Preço sugerido: R$ 22,90.

O disco da Deltas foi lançado nas plataformas digitais. A versão física custa R$ 15.

Pontes culturais reforçadas pela sonoridade

Lançado em dezembro de 2015, o primeiro disco da Deltas passou a ficar mais conhecido entre julho e agosto de 2016, quando a banda começou a fazer os primeiros shows de divulgação. A turnê teve início no Paraná e em São Paulo e depois passou pelo Festival de Inverno de Garanhuns, por Washington e por Nova York, onde o grupo tocou respectivamente nos prestigiados Kennedy Center e Lincoln Center. No Recife, por enquanto, só foram feitos ensaios abertos ao público. A primeira apresentação oficial está marcada para 2 de setembro na inauguração do Soul Food Park, em Casa Forte.

No ano passado, no Recife, as orquestras do norte-americano Wynton Marsalis e do pernambucano Maestro Spok revelaram as intersecções entre o frevo do Brasil e o jazz dos Estados Unidos. A Deltas faz um caminho semelhante, só que com foco em outras manifestações musicais de configurações diferentes. No lugar dos naipes de metais, eles apontam para as semelhanças em detalhes mais intimistas de gêneros como o blues e o baião, sobretudo no diálogo entre os instrumentos de cordas e de percussão.

Assim como o blues nasceu de forma mais rústica no ambiente rural do sul dos Estados Unidos e foi eletrificado quando os ex-escravos econtraram refúgio no cenário urbano de Chicago, a Deltas absorve a influência do baião do Sertão e a reconstrói no caos cosmopolita do Recife enquanto metrópole. O nome da banda sugere um encontro simbólico entre as águas dos rios Capibaribe e Mississipi.

“O blues e o baião são universos muito ricos, que nos permitem trabalhar com uma variada gama de cores”, constata o guitarrista Dirceu Melo diante da diversidade demonstrada nas faixas do disco da Deltas. Apesar de estarem dentro de uma mesma proposta cultural, cada música parece ter um estilo diferente entre si. “Tanto no blues quanto no baião, a origem da musicalidade é a África”, aponta o músico ao se referir à herança trazida pelos escravos negros. “De um começo melancólico nos cânticos das colheitas, a música desenvolveu-se até chegar ao rock e também ao forró, que são mais festivos”, compara. “Ambos têm uma blue note”, detalha Dirceu, mais conhecido pela banda Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis.

Em algumas músicas da Deltas, chega a ser difícil identificar exatamente onde termina o blues e onde começam os elementos do Nordeste brasileiro. A escolha dos instrumentos amplia ainda mais as fronteiras para outras regiões do mundo. No lugar da sanfona, por exemplo, é utilizada uma escaleta (bastante associada ao reggae jamaicano). Além de violas e guitarra, Dirceu toca gaita e uma baglama turca, além de usar efeitos eletrônicos. Os demais integrantes são Thiago Fournier (contrabaixo, rabeca e percussão), Walter Maymone (guitarras e violão), Cristiano Bivar (bateria) e Carlos Amarelo (percussão).