Polêmica multicultural Decisão do governo do estado de excluir do carnaval 2017 shows de gêneros musicais como brega, forró eletrônico, funk, sertanejo e pagode inflama debate sobre discriminação na cultura popular

Isabelle Barros
Larissa Lins
edviver@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 28/12/2016 03:00


Brega, swingueira, arrocha, funk, sertanejo, pagode estilizado, forró eletrônico e forró estilizado foram “barrados” na convocatória da Secretaria de Cultura de Pernambuco e da Empresa Pernambucana de Turismo (Empetur) e estão fora do carnaval apoiado pelo governo do estado em 2017. Divulgado ontem, o edital determina quais gêneros musicais estão aptos a integrar a programação multicultural do próximo ano: cultura popular (40% dos recursos), música de tradição carnavalesca (30%), grupos e artistas da música popular brasileira (20%) e orquestras de frevo (10%) serão os grupos responsáveis pela animação da festa. Gêneros como axé, rock, pop, pop rock nacional e forró tradicional estão liberados, enquadrados na categoria MPB - “desde que, para esta última categoria [forró], ligados à tradição junina ou que tenham a tradição junina como fonte de pesquisa no trabalho a ser apresentado”, determina o texto. A convocatória estará com inscrições abertas entre os dias 4 e 12 de janeiro de 2017.

A decisão dividiu opiniões entre artistas e produtores culturais locais, embora não deva “banir” os gêneros musicais preteridos da grade do carnaval do Recife, já que as prefeituras têm autonomia para contratar artistas de quaisquer segmentos para suas festas. A repercussão da medida governamental trouxe à tona palavras como “desrespeito” e “preconceito”, além de questionamentos sobre a frequente inadimplência para com os artistas contratados e a suposta falta de competência por parte do governo para julgar quais gêneros devem ou não ser ouvidos durante o período momesco. A sociedade civil não foi consultada para opinar sobre a mudança.

Cidades do interior mais dependentes do aporte financeiro do governo estadual para a realização da festa devem ser as mais afetadas. Bandas dos gêneros musicais, especialmente o brega, uma das cenas mais fortes da música do estado, deixados de fora já haviam sido contratadas em anos anteriores. “Fomos pegos de surpresa. Acho que a decisão é um erro. Estamos criando uma cultura séria no estado e isso deveria ser mostrado. A banda tocou no interior em 2015, pela convocatória do governo, e foi uma boa experiência. Pretendíamos apresentar uma proposta esse ano, se tivéssemos uma oportunidade. Isso vai repercutir mal dentro dos gêneros que foram barrados”, reclama Wilamys Freitas, produtor da banda de brega Torpedo.

“Damos um apoio expressivo, mas não determinante, a mais de 50 cidades pernambucanas. Não estamos discriminando gêneros musicais nem fazendo juízo de valor, mas vamos privilegiar a música que é menos tocada nas rádios. É uma opção política do estado”, declarou o secretário de Cultura de Pernambuco, Marcelino Granja. Segundo ele, as mudanças na política de produção dos ciclos festivos no estado eram esperadas, pois havia uma reclamação de quem fazia cultura. “No carnaval e no São João só se contratam artistas pernambucanos ou ‘pernambucanizados’ há dois anos. Desde o ano passado já havia essa ênfase, com o intuito de priorizar a cultura popular da terra”, explicou.

De acordo com o gestor público, esse apoio se traduz em números que atestariam uma aproximação maior do governo do estado com a cultura popular. “Em 2016, aplicamos 4% dos recursos para orquestras e vamos subir para 10%. Já o aporte para a cultura popular vai subir de 20% para 30% e, no caso das músicas de tradição carnavalesca, como samba e frevo, o valor passa de 30% para 40%. A MPB vai ficar com os mesmos 20% do ano passado. É preciso frisar que as prefeituras podem continuar contratando quem elas quiserem, até porque elas gastam mais do que o governo, especialmente no Recife, em Olinda, Pesqueira e Bezerros”. A programação da capital, ainda sem data para ser anunciada, deve manter a predominância de artistas pernambucanos - em 2016, foram 99% de atrações locais -, mas sem restrição com relação a gêneros musicais.

Michele Melo, cantora
“Não trabalho no carnaval desde que me tornei dona do meu destino. A decisão é absurda, total desrespeito. Vários artistas locais esperam essa época para fazer um caixa. Por mais que as pessoas não aceitem, somos a maior ‘empresa’ pernambucana gerando empregos diretos e indiretos. Geramos renda para o vendedor de lanche, para instrumentistas... Por que não sou cultura? Se a nossa música toca todos os dias, em todas as classes, por que não sou cultura? As pessoas precisam deixar de ser hipócritas. A decisão é preconceituosa. As bandas de brega ainda tocam frevo. Por que o brega não pode ser tocado?”

Renato Phaelante, produtor, escritor e pesquisador fonográfico
“Já que estamos em crise, a hora é essa para reafirmar o folclore da região. [A decisão] indica um fortalecimento dos gêneros de raiz e da multiplicidade do nosso folclore, da nossa música popular. Fará com que essas manifestações sejam mais vistas pelo povo. O que é popular? É o que o povo fabrica e invoca para si. Nosso carnaval tem por caracteristica o frevo de bloco, frevo canção, samba. São coisas nossas, genuínas. Esses gêneros criados pela mídia são passageiros e o carnaval não pode ser passageiro. Essas músicas já têm seu lugar na mídia durante todo o ano”.

Paulo Perdigão, sambista
“É uma questão delicada. Sempre fui contra bregas que exploram a sexualidade, objetificam o corpo da mulher, essa coisa do ‘novinha, vem para cá’. Mas não sou contra o artista fazer brega, sou contra apologias à criminalidade, desvios de conduta. Acho que essas músicas são da vontade popular. Elas consomem e gostam disso. Devemos respeitar a preferência. Deveria ser criado um fórum e essa decisão deveria ser debatida entre a própria classe artística, produtores, o segmento musical como um todo. Mas acho que o forró eletrônico, estilizado, também é cultura popular, não deve ser banido.”

China, músico
“Eu acho que antes de o governo dizer quem vai tocar e quem deve deixar de tocar, deveria se preocupar em pagar em dia. Essa coisa de escolher estilos que vão tocar no carnaval é só a ponta do iceberg. Não participo do carnaval pernambucano há quatro anos por não concordar com esse tipo de postura do governo. Isso é desrespeitoso com o artista. Deveriam estar mais preocupados com a organização das contas, com o pagamento dos artistas, do que decidir qual estilo musical vai tocar ou não. Falar de estilo musical em um carnaval que tem a marca da multiculturalidade é até meio estranho...”

Paulo André Pires, produtor cultural
“Concordo totalmente com esse caminho. A decisão passa não somente pela questão da identidade, mas da segurança. O formato ‘festival de música pop’ contribui para acabar com a cultura do carnaval e estimula a violência. As atrações não podem ser definidas no gabinete. O estado deve subsidiar a cultura, a popular em primeiro lugar, valorizar artistas da terra. Bastou o fundador do Galo da Madrugada morrer para desvirtuarem o bloco. Colocaram Calypso, por exemplo, dizendo que é o que o povo quer. As coisas estão perdendo o sentido, a razão”.

Wagner Farias (Waguinho), cantor da Banda Santroppê
“Não sei qual foi, de fato, a justificativa do governo. Não sei se eles vão diminuir as contratações e dar preferência a bandas de carnaval. Se for dessa forma, acho que a decisão foi correta, mesmo se essas bandas não absorverem a demanda da época. Se o governo simplesmente contratar artistas de fora, aí acho ruim. O governo tem de prestigiar a cultura pernambucana e artistas como Almir Rouche e Alceu Valença. Fico triste em ver bandas maiores ou cantores que tocam em Pernambuco nesse período e nem se dão ao trabalho de escolher um repertório adequado para o carnaval”.