Velho é o nome Representantes do pastoril profano, tradição natalina nordestina, travam uma batalha cultural permanente pela valorização histórica da encenação popular

texto: ISABELLE BARROS
isabelle.barros@diariodepernambuco.com.br
design: Moacyr Campelo

Publicação: 24/12/2016 09:00

A chegada do período natalino significa mais que a perspectiva de reunião familiar para quem é apaixonado pelos folguedos populares nordestinos. É a época, por excelência, na qual os pastoris começavam a ocupar os espaços públicos, seja louvando o nascimento de Jesus Cristo, nos pastoris religiosos, seja subvertendo a tradição para castigar os costumes terrenos, nos pastoris profanos. No caso dos véios do pastoril, as habilidades são múltiplas: cantar, dançar, compor e contar piadas, como palhaços populares talhados para fazer críticas libertinas. Os sátiros do povo já foram mais comuns na paisagem humana do Nordeste, mas há quem tome coragem e resista na picardia.

Antônio Coutinho, 81, nascido em Bezerros, no Agreste, tem voz mansa e gestos de cavalheiro que podem enganar quem não o conhece como o Velho Xaveco, um dos poucos ainda em atividade no Recife. Ferroviário aposentado e ex-forrozeiro, vestiu-se definitivamente com o personagem em 1987 e se apresenta onde é chamado. O dom para a poesia, sobretudo sonetos, o transformou em compositor e a experiência como percussionista na infância o ajudou a fazer transição mais suave para um universo mais picante, com a cantoria e as piadas de duplo sentido próprias desses personagens populares. Na carreira, lançou 2 LPs: Eu já fui bom nisso (1991) e Pacu pequeno, pacu grande (1995).

Nos últimos anos, Xaveco se apresenta com cinco pastoras-bailarinas e duas backing vocals, além de seis músicos, com violão, percussão, zabumba, saxofone e Nido do acordeon. As “jornadas”, ou músicas, copiam em parte a estrutura do pastoril religioso, mas diferem no conteúdo, com trocadilhos e lorotas, além de referência à cobra, símbolo fálico usado como bengala e tratado por ele como “amuleto do véio”. “Um velho de pastoril precisa ser compositor, poeta, produtor, diretor e cantor, mas vale porque as pessoas gostam de rir. Os temas são atualizados, mas a disposição é a mesma. Uma das minhas canções é O velhinho quer tomar viagra”, afirma.

O artista enumera as dificuldades e diz que elas quase tiram o gosto para a brincadeira. “A invasão de outras músicas, como o funk e o sertanejo, deixaram a cultura popular de lado. Não se ouve mais pastoril no rádio ou na TV. Chacrinha, por exemplo, conhecia e copiou a estrutura do pastoril profano. Suas pastoras eram as chacretes. Até 2007, eu tinha atividade intensa no Recife e na Zona da Mata, em festas de santos. A violência e a crise econômica fizeram as viagens minguarem. Estou até rejeitando trabalhos à noite por conta da bandidagem, pois é melhor nos apresentarmos a partir das 22h, por conta das piadas”.

Outro sintoma dos “novos tempos”, para o Velho Xaveco, é o tratamento dispensado à mulher e ao público LGBTT nas canções, nas danças e no figurino. Só para lembrar, as pastoras vestem trajes muito mais sumários e são bem mais libidinosas do que na versão religiosa. “Não denigro o sexo feminino nas piadas. Minha tendência para escrever é calcada na cidadania. Deixei de fazer brincadeiras e cantar músicas sobre gays. Procuro exercer a aceitação”.

Cria e apadrinhado do Velho Xaveco, Silas Araújo, de 41 anos, é um caso raro: tornou-se, há seis anos, o Véi Lumbrigueta. A ligação entre ambos começou de forma inusitada. Ascensorista em prédio na Boa Vista, o brincante reconheceu Antônio Coutinho no elevador e ambos começaram a conversar. A partir daí, Silas, que já era ator e palhaço na Bomba do Hemetério, onde vive desde a infância, começou a compor e montou seu grupo de pastoras. Começou com a esposa, a prima e uma amiga e, hoje, são cinco mulheres. Seu acompanhamento musical é feito pela Orquestra Lumbriguetofônica, com quatro músicos e um repertório de cirandas, cocos e marchinhas. “Sou despachado, mas, ao mesmo tempo, é preciso prestar atenção. Não dá para ter muita picardia quando tem criança vendo. Só conto piadas mais fortes depois das 22h e sem crianças no ambiente”.

Um dos diferenciais do Véi Lumbigueta está nos adereços. Em vez de uma cobra, ele escolheu uma macaca para acompanhá-lo. O Velho Xaveco e o Velho Faceta são suas maiores referências e Silas misturou as influências à métrica do cordel e aos causos sertanejos. “O pastoril é especial porque traz alegria sem precisar de uma grande produção. Para mim, ele vai durar para sempre, mas, infelizmente, sem o valor merecido. Só como véio, já não me apresento há dois meses. A falta de renovação existe e é triste, mas tem gente boa por aí sem condições de divulgar o próprio trabalho. As pessoas gostam de palhaços e precisam sorrir. Acredito que se brinca de pastoril até mesmo sem saber, assim como eu fazia. Isso não é apenas moda, é muito mais profundo”.

A inspiração para todos os profanos

O legado do Velho Faceta (1925-1986), nascido, segundo alguns pesquisadores, como Constantino Leite Moisakis em Carpina, é reverenciado até hoje pelos admiradores da cultura popular e pelos velhos de pastoril profano ainda em atividade. O brincante se apresentava no interior após as 20h e varava a madrugada, sempre com suas pastoras, canções e piadas picantes. O pastoril também era conhecido como Rosa Branca. Ele inventava xingamentos a quem pagava para difamar inimigos nas apresentações. Gravou três álbuns no fim dos anos 1970 e difundiu o trabalho a outros públicos.

Ao defender o formato mais tradicional do pastoril profano, o Velho Faceta se tornou modelo para os “véios” seguintes e foi usado como referência na cultura pop. Exemplo emblemático é o do grupo Os Trapalhões, que fez versão da música O casamento da filha do Velho Faceta, com o nome Papai, eu quero me casar. Chico Science e Nação Zumbi homenagearam o Velho ao usar sample da música Boa noite, do Velho Faceta, no início do clássico A cidade, no álbum Da lama ao caos. Chacrinha gravou duas músicas compostas por ele: Bacurinha e É mais embaixo.

Faceta também teve a atividade reverenciada pelo teatrólogo e estudioso da cultura popular Hermilo Borba Filho, que teve um pequeno texto de sua autoria, escrito em 11 de janeiro de 1973, publicado na contracapa do primeiro disco do brincante. “Já que não podemos salvar, como pessoas humanas, estes músicos, coreógrafos, bailarinos, atores, cantores, poetas, pelo menos tentemos salvar sua arte, dentro de roteiros honestos. Uma coisa esquisita vai acontecer: o espetáculo morre mas a música e os versos viverão. Isso vai acontecer com o Bumba, o Mamulengo, o Pastoril, o Fandango, o côco, o Reisado, a Chegança, a Taieira, o Bambelô, a Ciranda, o Maracatu, os Caboclinhos e a Cavalhada”.

O olhar afiado do Véio Mangaba

Outro observador atento da situação dos pastoris é o ator, palhaço e músico Walmir Chagas, artista com 40 anos de carreira e criador do Véio Mangaba, personagem icônico das artes cênicas pernambucanas. A recriação inspirada na tradição popular já vai completar 20 anos em 2017 e ajudou a aproximar a classe média desse tipo de manifestação cultural. A experiência o deixa em posição confortável para opinar sobre as condições de sobrevivência do folguedo profano. “De pastoril autêntico na capital, só existia o Velho Dengoso, de Chão de Estrelas. Essa posição pode parecer radical, mas não quero desvalorizar o trabalho de ninguém. A falta de locais e de condições para se apresentar desestimula os artistas. Com o tempo, acaba. Meu pai perguntava: ‘Recife é pobre porque não tem dinheiro, ou não tem dinheiro porque é pobre?’. Uma coisa alimenta a outra. Você não se dedica porque não há mercado. Poderia ser criada uma escola para ensinar a arte do pastoril”.

A importância de manter a existência do pastoril, segundo Walmir, reside em sua facilidade em falar a língua do povo e alcançar camadas impossíveis de outra forma. “Eu entendo o começo, o meio e o fim do pastoril como uma crítica social. Você fala, por exemplo, sobre uma besteira que o politico fez. O meu mesmo é muito assim. A arte, a educação e a informação estão de braços dados. A gente tem de reportar as coisas boas e ruins. As pessoas ficam rindo da vida dura que a gente leva”.

Resistência com renovação popular

Enquanto o profano esbarra em dificuldades para encontrar artistas dispostos a seguir a tradição, o religioso se esforça para colocar as pastoras na rua. Compostos por crianças, adolescentes, mulheres adultas e até idosas, os grupos resistem em escolas, igrejas e bairros ou comunidades dos subúrbios.

Junto com grupos mais tradicionais, como o Rosa Mística, fundado há 59 anos e homenageado no Ciclo Natalino deste ano do Recife, há agrupamentos mais recentes, como o Giselly Andrade, com 16 anos de vida. A fundadora, Ana Farias, identifica tendência de crescimento, apesar dos poucos recursos com os quais os integrantes de cada agrupamento vivem. “O religioso subiu nos últimos anos. Mulheres adultas e senhoras participam mais. Estão surgindo mais grupos de terceira idade e isso se reflete no folguedo. Dona Lourdes do Nascimento, do Rosa Mística, junta um dinheirinho todos os meses para colocar o pastoril na rua. É preciso ter muito amor para isso”, diz.

A atuação de Ana começou como desejo pessoal pelo gosto pela cultura popular, passado para a filha, homenageada com o nome do pastoril. Aos poucos, os preparativos envolvendo as apresentações se tornaram profissão. A produtora representa 25 grupos de pastoril do Recife e da Região Metropolitana. “Quando criança, dancei pastoril com papel crepom. Era a contramestra e a mestra rasgou minha roupa. Isso me marcou. Na adolescência, minha mãe não me deixava dançar por preconceito, porque eram na rua. Ao ver minha filha completar 13 anos, decidi fazer um pastoril para ela e pesquisar”.

O Pastoril Giselly Andrade investiu em composições próprias e segue parte do roteiro clássico das apresentações religiosas. “Meu grupo é formado por pessoas das mesmas famílias. Uma sobrinha puxa uma irmã, e por aí vai”. Até agora, o coletivo capitaneado por Ana lançou dois CDs e um DVD. Sobre as diferenças entre o pastoril religioso e sua versão profana, a produtora contemporiza. “Amo os dois, morro de rir com as piadas”.

Velho dengoso
Um dos animadores populares mais conhecidos em Chão de Estrelas, José Justino da Silva, o Dengoso, é um dos representantes do pastoril profano mais emblemáticos do Recife. A trajetória ilustra o surgimento dos mestres clássicos: a sua atividade começou no Pastoril do Morcego, em Peixinhos, aos 13 anos. As habilidades melhoraram por décadas como cantor, mamulengueiro, coquista, cirandeiro, compositor e animador de boi. Aos 63 anos, Velho Dengoso ilustra a situação do pastoril profano no estado. Deu uma pausa na rotina de shows por problemas de saúde e, procurado pela reportagem, não quis falar sobre o ofício. Foi homenageado, em 2006, pelo Festival de Teatro de Rua do Recife, e gravou um DVD em 2013.

Tonheta
O pernambucano Antonio Nóbrega é um dos vários artistas influenciados pelo Velho Faceta. Nos anos 1990, criou o seu palhaço popular, Tonheta, a partir de imitações feitas do decano do pastoril. “Esse Toinho que aqui vos escreve tinha o hábito de frequentar as apresentações do Pastoril do Faceta, no Janga. Foi esse Velho - segundo uns, Constantino Leite Moisakis, e, segundo outros, Jones Francisco da Silva - que por vários anos acompanhei em andanças e apresentações”, relata o site do artista.

Características

Origem

Os autos de Natal portugueses, com a representação do nascimento de Jesus, remontam à Idade Média, quando cidades e aldeias se mobilizavam para contar a história. A chegada dos pastoris ao Brasil obedece ao sentimento religioso da antiga metrópole colonial. No estado, a manifestação chegou cedo, como aponta a pesquisadora de cultura popular Maria Alice Amorim. “O pastoril tem vários elementos do Auto do Presépio, teatro popular português. Como escreveu Pereira da Costa, registros dão conta da existência de pastoril entre nós desde os primórdios da colonização, datando do final do século 16 um registro no Convento Franciscano de Olinda”.

Cores

As marchas, loas e cantigas, batizadas de jornadas, em homenagem a Jesus e à chegada dos três Reis Magos tinham fins de catequese e são cantadas por pastorinhas, originalmente crianças e adolescentes, divididas nos cordões com as cores azul e encarnado. Muitas vezes, são encenações no fim da tarde ou início da noite, na frente de igrejas ou em escolas. A subversão desses traços é que compõe o chamado pastoril profano, que tem origem controversa, apontada por pesquisadores de cultura popular como uma tradição bem mais recente, do século 19.

Divisões

As divisões entre os pastoris e a atração exercida pelo profano, que se reveste de crítica à sociedade, são abordadas por Maria Alice. “O pastoril sagrado apresenta fragmentos de cantos e entrechos dramáticos desse auto popular medieval, de caráter religioso, e a nossa versão bem abrasileirada, picante, irreverente do pastoril é chamada de profana por ser paródia galhofeira da festa bem-comportada e com fins religiosos. A galhofa fica com o velho do pastoril, safado e escrachado, que conduz a Diana e as pastoras dos cordões com piadas e cantigas de duplo sentido, mais a dança lasciva das pastoras, que não são crianças, adolescentes ou angelicais”.