Mentiras sinceras nos interessam... Memórias inventadas conduzem o romance de estreia do pernambucano Inácio França, inspirado na vida da artista plástica Tereza Costa Rego

Fellipe Torres
fellipe.torres@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 27/04/2017 03:00

Obra narra trajetória da pintora entre 1962 e 1979. Inácio abriu mão da biografia e romanceou a história (KARINA MORAIS/ESP.DP | RENATO MOREIRA/DIVULGAÇÃO)
Obra narra trajetória da pintora entre 1962 e 1979. Inácio abriu mão da biografia e romanceou a história

Com frequência, a ficção se torna refúgio para temas cuja totalidade não consegue ser abraçada pelo jornalismo. Parte do desafio é lidar com a memória: se toda ela é inventada (umas mais, outras menos), como incorporá-la ao texto sem desviar do compromisso com os fatos? O dilema mudou o rumo de um projeto tocado há quase duas décadas pelo jornalista pernambucano Inácio França. Para abrigar as “lembranças reinventadas” de sua interlocutora, a artista plástica Tereza Costa Rego, 87, ele abriu mão do gênero biográfico para contar a história de “várias mulheres em uma”. O resultado foi a novela Terezas (Editora Confraria do Vento, R$ 45), cujo lançamento será hoje, às 19h, na Casa 12 (Rua Silvino Lopes, 12, Casa Forte).

A disparidade entre verdade e memória se fez presente desde o primeiro contato entre autor e personagem. Em 1999, em entrevista sobre os 20 anos da Lei da Anistia, o então repórter especial do Diario de Pernambuco ouviu Tereza relembrar a morte do marido no primeiro dia após a volta do exílio. Depois de publicada a matéria, descobriu-se certa incompatibilidade do relato com o fato histórico, embora a verdade soasse “menos interessante”. Aquele encontro foi o início de uma longeva amizade, marcada por muitas conversas e novas entrevistas para compor o tal projeto de biografia.

“A diferença entre a versão contada por ela e o que realmente aconteceu ficou na minha cabeça. Dez anos depois, comecei a checar as histórias e percebi que ali não caberia o jornalismo, pois ele não daria conta de capturar a intensidade da vida daquela mulher, que foi filhinha de papai de um senhor de engenho, socialite casada com um magistrado e que ‘corneou’ ele com o homem número dois de (Carlos) Prestes”, diz Inácio França, em referência ao político Diógenes Arruda Câmara.

Com a decisão de romancear a realidade, Tereza Costa Rego passou a revelar histórias mais picantes e bastidores do Partido Comunista. Coube a Inácio preencher lacunas, mudar nomes de personagens, criar diálogos. Com alguns saltos temporais, o livro narra desde um período anterior ao golpe militar, em 1962, até o momento da volta do exílio, em 1979. São dois momentos de transformação: no primeiro, a personagem trai o marido e rompe com os “bons modos” da sociedade, enquanto no segundo, quando Diógenes Arruda morre, ela deixa de ser a companheira do líder comunista e passa para uma nova fase, já aos 50 anos de idade.

“É um ponto de convergência. Para mim, é muito reconfortante ver uma pessoa se recriar aos 50. Tenho 48 anos e espero que alguma coisa aconteça. Essa mulher que conhecemos hoje não foi uma menina prodígio. Ela viveu bastante para poder se reinventar”, conclui Inácio França.

Trecho

Recife, 1964
Ela estava casada com o magistrado, é verdade. Tinha duas filhas, também é verdade. O hímen tinha ficado para trás, como mancha no lençol há mais de 10 anos, outro fato sem contestações. É provável que, com o marido, ela até experimentasse um orgasmo discreto no sexo sem paixão, porém com método. Mesmo assim, e por isso mesmo, sentia-se virgem. Uma donzela absoluta. Descobriu isso ao voltar sentindo-se mulher depois do que deveria ser um tranquilo passeio ao parque. Depois que o romance virou escândalo na porção bem alimentada do Recife, as senhoras que se visitavam no final da tarde para o cafezinho e os cavalheiros do Country ou do Português, tentavam adivinhar como e quando a mulher do juiz o havia consumado o adultério com tanto gosto. Consumar o adultério eram palavras pronunciadas com a boca cheia, grafadas com leite e mel.