Do caos à lama, da lama à tevê Série do Canal Brasil remonta à efervescência do Recife dos anos 1990 às vésperas do manguebeat, com produção e elenco íntimos do movimento - a exemplo da filha de Chico Science, a atriz Louise França

Fernanda Guerra
fernanda.guerra@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 15/07/2017 03:00

Movimentos culturais podem modificar uma cidade. Sem se restringir à nostalgia, a série Lama dos dias pretende mostrar como o manguebeat transformou a história do Recife nos anos 1990 a partir de uma narrativa ficcional. A produção, prevista para estrear no ano que vem no Canal Brasil, está sendo gravada na capital pernambucana e em Olinda até o dia 30 deste mês. Com sete episódios, o seriado começa no momento pré-mangue, mas a ideia é que a segunda e a terceira temporadas adentrem nos anos 1992 e 1994.

Os diretores Hilton Lacerda e Helder Aragão (DJ Dolores) participaram da história de perto, como amigos e personagens da trajetória do movimento. A dupla Dolores & Morales criou capas de discos de bandas do período, como Da lama ao caos, o primeiro de Chico Science & Nação Zumbi, além de outros títulos de Mundo livre S/A e Eddie. Os dois também dirigiam clipes e shows do período cultural. Do elenco da série, um nome conduz para um tom mais afetivo da produção. A atriz Louise França, de 26 anos, conhecida como Lula Lira, é filha de Chico Science e estrela a primeira série de tevê da carreira. Além deles, outros nomes cuja história está atrelada ao mangue também fazem participações especiais. É o caso do produtor cultural Roger de Renor e do jornalista Renato L.

“A gente não queria dar conta de uma história real. Queríamos personagens fictícios, de forma que a gente ficasse muito livre. É muito mais do que está ao redor do movimento mangue que a própria história dele”, esclarece Hilton, responsável pelo longa-metragem Tatuagem (2013) e a série Fim do mundo (2016), a primeira para o Canal Brasil. Da conexão com a época, Lama dos dias aborda a aproximação da classe média com a periferia a partir dos dois núcleos da ficção: a banda Psicopasso, do Alto José do Pinho, e um grupo de amigos da universidade. “A série não quer ser saudosista. No momento bastante turbulento que a gente vive, a produção coloca em uma relação de tempo essa turbulência da época, mas muito contemporânea no sentido de conflito, do que pode acontecer em uma cidade e de que forma você inflama a imaginação de uma população para que ela se rebele em um sentido criativo”, pontua Hilton Lacerda.

Quando soube da série, Louise se ofereceu para o projeto. “Durante as gravações do documentário Chico Science: Um caranguejo elétrico, Dolores tinha contado que estava escrevendo uma série. Eu fui bem enxerida. Meu olhinho brilhou”, recorda a atriz e cantora. Para ela, o projeto tem uma certa intensidade. “É como se eu estivesse vivendo tudo que meu pai e os amigos viveram nessa época. Tem um monte de referências musicais de que ele gostava, que os meninos ouviam. Para mim, é como se estivesse entrando em uma máquina do tempo e vivendo tudo”, resumiu a filha de Science. “Tem um momento em que eu pergunto para o personagem Ezek sobre Chico e Jorge. Por coincidência (ou não), acabei ficando com essa fala”, adianta.

O roteiro é construído a partir da memória dos diretores. Os fatos e personagens reais aparecem em diálogos ou em cenas. Entre as referências ao mangue, o espaço Oasis, local onde Chico Science e a Nação Zumbi se apresentaram com o Orla Orbe, e a gravação de clipes que reconstituem cenas de Maracatu tiro certeiro e Samba esquema noise.

Além de Louise, que interpreta Lule, Isadora Gibson, Vitor Araújo e Geyson Luiz vivem, respectivamente, Adriana, Biu e Farmácia. O quarteto conhece Francisco, incorporado por Thiago Mercês, que representa um intermediador desses dois universos, assim como Ezek, papel de Matheus Tchôca. O período histórico, como a crise instalada no Governo Collor, é contextualizado. “É um momento de pré-tecnologia caseira”, pontua Lacerda. Os enquadramentos cinematográficos contribuem para excluir de cena a evolução tecnológica, como os ar-condicionados split das fachadas dos prédios.

A trama é estrelada por atores jovens ou não-atores, uma característica recorrente dos trabalhos de Lacerda. “Eu sempre acho muito excitante trabalhar com atores desconhecidos. A ideia, além de trazer esse rosto novo, é levar uma espécie de sotaque, de cheiro da cidade”, destaca o diretor. Em Tatuagem, por exemplo, era o primeiro papel no cinema de Jesuíta Barbosa (O rebu, Amores roubados). Para ele, também é importante que os atores se pareçam com a narrativa. Louise França, por exemplo, tem semelhanças com a personagem Lule. A preparação de elenco é de Nash Laila (Amor, plástico, barulho, Me chama de Bruna). Os atores Julio Machado e Maeve Jinkings são os mais experientes, mas fazem apenas participações.