Nas cinzas da história Coleção pernambucana de rótulos de cigarro se torna fonte para examinar costumes da sociedade no fim do Império brasileiro. Acervo sob guarda da Fundaj começa a ser disponibilizado ao público na internet

ISABELLE BARROS
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Publicação: 22/07/2017 03:00

O comerciante Vicente de Brito Alves viu, enquanto viveu, uma riqueza insuspeitada onde muitos viam apenas miudezas. Sua satisfação pessoal em colecionar rótulos de cigarros durante a segunda metade do século 19 se tornou, um século e meio depois, uma rica janela para o passado. O hobby deu origem à Coleção Brito Alves, com 1.252 itens, doados à Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) em 1964 por sua família. Esses invólucros - feitos num momento no qual os males do tabaco ainda eram tema distante - trazem à tona uma perspectiva privilegiada dos costumes, da sociedade e das inclinações políticas e econômicas do Recife e, por extensão, do Brasil, nos anos finais do Império.

Os rótulos da coleção estão disponíveis para consulta pública no site da Fundação Joaquim Nabuco, que também abriga coleções de rótulos de bebidas e doces. A pesquisadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, da Fundaj, ressalta a importância da existência de uma coleção como a Brito Alves. “Ela traz acontecimentos políticos e sociais muito fortes no cotidiano. Muitas vezes as mesmas tipografias dos rótulos de cigarro também faziam os jornais ilustrados da época. Havia uma profusão enorme de títulos, de temas. Alguns mostravam blocos de carnaval, estrelas circenses ou representações do índio, por exemplo, para mostrar uma pretensa identidade nacional. A política era muito presente no cotidiano das pessoas, então há uma farta representação de personalidades como o General Osório ou Joaquim Nabuco. A República e seus símbolos, como o barrete frígio, uma espécie de touca, também são muito enfocados. Por outro lado, há outras imagens mais românticas”.

Originalmente, os rótulos de cigarro não foram datados ou catalogados por Vicente de Brito Alves, então coube a pesquisadores ao menos estimar o recorte temporal da coleção, que teria itens a partir de aproximadamente 1870. Como a Junta Comercial de Pernambuco foi criada em 1875, a partir de uma polêmica nascida justamente por conta do plágio de um rótulo de cigarros, a Coleção Brito Alves traz um testemunho valioso de uma época anterior. A partir daí, cada empresa ficou obrigada a registrar sua marca e as datas dos rótulos passaram a ser determinadas com maior exatidão.

Os rótulos de cigarro eram feitos por meio de litografias, ou gravuras em pedra, que se tornou uma técnica que expressava tanto as “vistas”, ou paisagens do Recife, de forma mais artística, quanto se prestava a fins comerciais. “A litografia surge no século 18, mas chega ao Recife no século 19. Ela é contemporânea da Revolução Industrial, do impulsionamento do consumo. Essa técnica vai permitir uma profusão de impressos porque vai baratear os custos. Esses rótulos ainda não têm os mesmos preceitos do design moderno. Havia muita liberdade na criação de produtos e eles refletiam questões do dia a dia”, pontua o professor da Unicap Jarbas Agra, que teve a Coleção Brito Alves como parte de seu objeto de estudo durante o mestrado.

O valor da coleção é duplo: além de trazer um painel do pensamento do século 19 com relação a personalidades, revoltas populares, negros, índios e mulheres, os rótulos também compõem uma parte importante da memória gráfica brasileira. A pesquisadora Edna Cunha Lima, a primeira a realizar uma dissertação de mestrado sobre o tema, de 1998, insiste nessa questão. “O colecionismo das pessoas comuns é algo maravilhoso. A Coleção Brito Alves foi iniciada por conta do poder da imagem. Foi isso o que transformou o cigarro em algo tão penetrante no cotidiano brasileiro. As litografias seduziam os fumantes, ou fumistas, como se dizia. A cromolitografia, em especial, foi o grande processo de impressão de coisas populares do século 19. Um dono de uma fabriqueta de cigarros poderia, por exemplo, fazer rótulos a favor ou contra determinado tema, como a República. Ele vendia dos dois lados. Que licença poética”.

Os rótulos de cigarros começaram a ser substituídos na primeira metade do século 20 por carteiras de cigarros e, a partir daí, se acentuam as similaridades entre os produtos nacionais e os importados. As dezenas de fabriquetas de cigarro dão lugar a um oligopólio que também uniformiza a comunicação visual do fumo. O contraste entre a beleza dos rótulos e o alerta gráfico dos prejuízos do cigarro ajuda a ilustrar o quanto o mundo mudou e as imagens mudaram com ele.

Monarquistas
Exemplo de rótulo voltado para inclinações políticas. O espaço do rótulo ainda tinha uma mensagem escrita, o que não era incomum, citando as vantagens do fumo desfiado sobre o fumo picado.

Aos quebra-quilos
A Revolta dos Quebra-Quilos começou na Paraíba em 1872 e se espalhou pelo Nordeste até ser reprimida pelo Império em 1875. O incidente aconteceu porque os sistemas métricos tradicionais foram substituídos pelo sistema métrico francês, causando a revolta da população.

Colecionar é um hábito da família

A coleção de rótulos de cigarros iniciada por Vicente de Brito Alves foi apenas a primeira da família. O filho, o advogado pernambucano José de Brito Alves (1887-1963), admirava porcelanas, especialmente as francesas, e também começou a colecioná-las, além de adicionar novos rótulos de cigarro ao acervo do pai. A paixão foi repassada para o filho, o advogado criminalista Roque de Brito Alves, que, em 2008, doou seu acervo de peças antigas, sobretudo francesas, ao Museu do Estado de Pernambuco, onde está em exposição permanente. O foco de Roque são as louças brasonadas, que pertenceram a famílias nobres do século 19, com títulos do império: visconde, barão, marquês. O advogado e colecionador chegou a encontrar louças que pertenceram a Dom Pedro II. “Naquela época, a cultura francesa dominava o mobiliário, a cultura. Todas as pinturas eram feitas à mão. A maior parte das peças era de fazendeiros de cacau da Bahia, de café no Rio de Janeiro e Minas Gerais e senhores de engenho daqui de Pernambuco”.

Ainda hoje, ele faz doações esporádicas ao Museu do Estado, adicionando novos itens ao número original de 70 peças sob a guarda do museu há quase dez anos. “Coleções são uma boa higiene mental e ótimas para fazer amizades. Tenho muitas histórias. Passei dez anos tentando convencer uma pessoa do Rio de Janeiro a me vender um par de jarros. Me procuram até hoje e quando encontro uma boa peça, fico provocado, mas não quero ter uma recaída”, pontua, bem-humorado.

Segundo Roque, a importância de coletar objetos transcende o prazer do colecionador, e isso traduz a paixão secular da família Brito Alves pelo tema. “A coleção iniciada por meu avô é um extraordinário documento social e humano do século 19. Os fabricantes de cigarro faziam mais do que propaganda, mas uma análise de costumes de sua época. A parte gráfica é fantástica, as cores ainda estão vivas, mais de cem anos depois. Havia muita gente interessada nos rótulos, mas ele preferiu deixá-los em Pernambuco. Na minha opinião, a arte é melhor do que o direito e a ciência porque ela nos deixa mais humanos. Quem tem obras de arte deve fazer o povo ter acesso a elas e não deixá-las à vista de meia dúzia. Também doei minha coleção como uma prova de amor a Pernambuco”.

Pomba
Exemplo de como a Coleção Brito Alves não se limitava ao estado de Pernambuco, mas englobava rótulos do Brasil inteiro. Aqui, a mulher não é chamada de “bello sexo” e é apresentada de uma forma mais ousada

Bismarck
O “príncipe” Otto von Bismarck, oriundo da extinta Prússia, foi o estadista mais importante da Alemanha no século 19, formando, pela primeira vez um estado germânico único. Seu rosto em um rótulo de cigarro mostra o quanto esses produtos também eram veículos para o debate político

Os banhos de Olinda
A cidade de Olinda era uma concorrida estância de banhos marítimos, costume que começou a se popularizar no século 19, primeiro para fins medicinais e depois para fins de lazer. A situação colocou novos desafios ao recato público, em situação expressa na figura.

Machambomba (sic)
O nome faz referência ao primeiro trem urbano do Recife, cujo nome veio de uma corruptela do termo inglês machine pump. A maxambomba da capital pernambucana começou a circular em 1867

Africanos
Os traços exagerados usados para representar os negros, comumente chamados de africanos, são uma medida de como eles eram vistos na época, lembrando que os litógrafos eram brancos e, muitas vezes, europeus

“Bello sexo”
As imagens de mulheres bonitas e elegantes são usadas pelos comerciantes para vender produtos há tempos, e era o caso dos cigarros voltados para o “bello sexo”, ou como o sexo feminino era chamado na época pesquisada