Sem motivo para dar uma gargalhada Cinebiografia Bingo: O herói das manhãs narra, com licença criativa, a trajetória do palhaço Bozo, famoso na TV dos anos 1980 entre o público infantil

BRENO PESSOA
breno.pessoa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 23/08/2017 03:00

São Paulo - A figura do palhaço triste provavelmente se tornou tão difusa no imaginário popular por conta dos vários exemplos reais de quem que vive do humor ao mesmo tempo que enfrenta males emocionais. Um dos casos mais emblemáticos do país é o do ator Arlindo Barreto, um dos responsáveis por dar vida ao Bozo, personagem marcante para a infância dos anos 1980. O artista tem a trajetória ficcionalizada em Bingo: O rei das manhãs, nos cinemas a partir de amanhã.

Por ser uma marca, o nome Bozo não pôde ser utilizado no filme e acabou transformado em Bingo. E como não se trata de uma biografia literal, Arlindo virou Augusto, interpretado por Vladmir Brichta. O ator, no entanto, destaca que o longa faz um retrato fidedigno dos acontecimentos e do espírito da época. “É a história do palhaço triste”, sintetiza, acrescentando que seu personagem é alguém que provoca risos ao mesmo tempo que tem um lado sofrido e desajustado. “Na mesma em proporção que dá alegria, ele pode se afundar na tristeza, na amargura, nos seus dilemas humanos”, acrescenta Brichta.

A percepção do ator tem paralelo com a opinião do psicanalista Sigmund Freud, que enxergava as piadas de comediantes como espécie de válvula de escape para a ansiedade. Um estudo da Universidade de Oxford, feito em 2014 com mais de 500 humoristas, apontou que os elementos criativos para produzir comédia são similares àqueles vistos nos processos cognitivos de pessoas que sofrem de esquizofrenia, ansiedade e outros transtornos.

No filme, Augusto é um ator de pornochanchadas que tenta, sem sucesso, emplacar trabalhos na TV. O ponto de virada ocorre quando ele faz um teste para o papel de Bingo, palhaço que comanda um programa infantil. A atração vira sucesso, líder de audiência, mas ele segue frustrado por conta no anonimato imposto pela emissora, que o proíbe de revelar a identidade do apresentador.

A rápida ascensão acaba levando Augusto a uma escalada de festas, drogas, bebidas e sexo, combinação que não aplaca o incômodo de ser um ilustre desconhecido. Nessa sucessão de excessos, ele acaba se distanciando do filho, Gabriel (Cauã Martins), que sofre ao ver o pai divertindo outras crianças e o relegando.

Mesmo com ingredientes já vistos em outras obras sobre fama e ruína, Bingo mostra frescor por retratar, ainda que livremente, um ícone da cultura pop nacional. E, importante, sem recorrer a qualquer tipo de veneração ao personagem, algo comum em filmes que flertam com a cinebiografia.

Equilibradamente divertido e dramático, o longa carrega apuro técnico, atuações equilibradas (com destaque para o excelente trabalho de Brichta) e bom roteiro, assinado pelo competente Luiz Bolognesi (Bicho de sete cabeças). Marca uma acertada estreia de Daniel Rezende na direção de um longa. Com vasta bagagem como montador, incluindo uma indicação ao Oscar por Cidade de Deus, o cineasta desponta para uma carreira promissora por trás das câmeras.

Narcos vs. Bingo

Originalmente, o papel do protagonista iria para Wagner Moura, que desde o trabalho em Tropa de elite, em que Daniel Rezende foi montador, discutia participação na estreia dele como diretor. Quando o cineasta finalmente tinha o projeto em mãos, o ator estava ocupado com as gravações da série Narcos, da Netflix.

Moura sugeriu como possíveis substitutos Lázaro Ramos ou Brichta.

Domingos
Com sólida carreira de palhaço, o ator Domingos Montagner (1962-2016) e seu parceiro na companhia teatral La Mínima, Fernando Sampaio, atuaram como consultores do filme. A dupla participou do preparo de Vladimir para o papel de Bingo, além fazer uma ponta. É o último trabalho de Montagner nos cinemas.

2 perguntas // Daniel Rezende - cineasta

Como foi a transição de montador para diretor?
O diretor é o cara que teoricamente tem que saber de tudo. Comecei a sair daquele quarto escuro com ar-condicionado, onde você pode assistir o material e xingar o diretor, para sentar naquela cadeira, no set de filmagens, quente, cheio de gente fazendo perguntas, para depois ser xingado pelo montador. Não sei se foi uma escolha inteligente (risos). De cara, eu decidi que não iria montar qualquer trabalho que eu fizesse. Como montador, sempre gostei do que eu pude proporcionar para os filmes, de poder trazer um olhar fresco, contestar o diretor e dar outra visão. Óbvio que participei da montagem, mas como diretor. Foi muito prazeroso ver o material ser transformado por outra pessoa (o montador Márcio Hashimoto).

Além da questão de abordar o drama pessoal do Bingo, você parece interessado em mostrar os bastidores da TV na época. Foi um período marcante?
Eu fui criança nos anos 1980. A televisão era, para mim, um troço mágico e muito me interessava o que estava atrás do que a câmera mostrava para a gente. Eu queria muito, também, achar algo que pudesse conectar com as pessoas, ao mesmo tempo não ser raso e, ter uma história dramática, profunda, e, principalmente, olhar para a nossa cultura pop. Acho que o cinema olha pouco para a nossa cultura pop. A gente olha para problemas sociais, para o regional, e achei que tinha aí algo interessante. Eu trouxe muito da minha vivência pessoal.

O repórter viajou a convite da Warner Bros.