Arte sob véu da censura Cancelamento de mostra sobre diversidade sexual com 263 obras - pernambucanas entre elas - gera acalorado debate em torno da intolerância

Isabelle Barros
Isabelle.barros@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 13/09/2017 03:00

O fechamento abrupto da exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira, no Santander Cultural, em Porto Alegre, inflamou discussões em todo o Brasil a respeito dos limites da arte e sobre intolerância. A mostra convidava à reflexão a respeito das diversas manifestações da diversidade sexual e contava com 263 obras de 85 artistas, mas foi eclipsada com a acusação de ter incluído peças consideradas como supostas apologias à pedofilia, à zoofilia e a blasfêmia a símbolos católicos. A celeuma ilustra a polarização social do país e coloca sobre o campo da arte contemporânea uma repercussão que não tinha entre quem não acompanha o segmento.

Professora e pesquisadora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco, Madalena Zaccara afirma que a liberdade da criação artística é posta à prova há muito tempo, mas, com a capacidade de conexão na contemporaneidade, esse cenário foi ampliado. “O ser humano não muda muito. Esse é o mesmo tipo de reação em cadeia que culminou, por exemplo, na exposição de arte degenerada durante o nazismo. O policiamento e o patrulhamento não se transformam, e vemos isso tanto na direita quanto na esquerda. O italiano Umberto Eco disse que a internet deu voz ao idiota da aldeia. A internet multiplicou essa voz por mil. As pessoas resolveram não gostar do que desconhecem, baseadas em seus próprios valores, e querem impedir os outros de terem acesso. Muitos julgaram a exposição sem sequer ir, baseadas na opinião de outrem”.

Embora a mostra estivesse em cartaz desde o último dia 15 de agosto, a polêmica aconteceu de fato a partir da última quarta-feira, quando houve as primeiras manifestações negativas sobre a mostra nas redes sociais. Na quinta-feira, feriado de 7 de setembro, a exposição esteve fechada, mas os ataques a ela ganharam força a partir da sexta e do sábado, quando militantes do Movimento Brasil Livre (MBL) foram até o museu e protestaram contra a mostra usando a tática do escracho, filmando e abordando quem a visitava. Ao mesmo tempo, as redes sociais do Santander Cultural foram inundadas de comentários negativos e de ameaça de boicote ao Santander, banco que mantém o centro cultural na capital gaúcha. A pressão culminou no cancelamento do evento, no domingo. A ação atingiu ainda dois artistas pernambucanos cujas obras foram selecionadas pelo curador Gaudêncio Fidélis: Deyson Gilbert, radicado há anos em São Paulo, com o trabalho Coitus (2012), e Montez Magno, com a série Galáxias (2008).

Quem saiu com a imagem mais arranhada foi a instituição gaúcha, que, ao ceder à pressão de militantes do MBL e de grupos católicos para fechar a mostra, desagradou a comunidade artística brasileira, militantes LGBTs e quem discorda da posição do Movimento. Um abaixo-assinado circula pela internet com mais de 40 mil assinaturas pedindo a reabertura da mostra. A ausência de qualquer indício de pedofilia foi atestada, inclusive, pelo Ministério Público gaúcho, que visitou as obras na segunda-feira. Em entrevista ao site G1 do Rio Grande do Sul, o promotor da infância e juventude de Porto Alegre, Júlio Almeida, manifestou-se sobre o tema. “O que existe são algumas imagens que podem caracterizar cenas de sexo explícito. Do ponto de vista criminal, não vi nada”.

A pernambucana Clarissa Diniz, curadora-assistente do Museu de Arte do Rio (MAR), é uma das profissionais do setor atentas aos desdobramentos dessa polêmica e lamenta a posição tomada pelo centro cultural. “Museus não são espaços neutros. Situações como essa deixam isso muito claro. As instituições e os artistas precisam entender que estão em um território de disputas. A prática artística pressupõe uma tomada de posição e ela está cheia de ambiguidades em todos os níveis, pois os sentidos das coisas são sempre tensionados. Essa situação poderia ter até acontecido em um outro momento, mas, obviamente, essa tensão está mais aguda e ações semelhantes devem ocorrer com mais frequência. O assustador é ver que a instituição não negociou essa ambiguidade e optou pela autocensura. O Santander Cultural poderia ter promovido um debate e abordado essas questões em vez de jogar terra em cima das dificuldades”.

Outro lado da questão também é levantado por Clarissa: a relação entre o público e o privado na cultura brasileira. Isso ficou explícito pelo recuo do Santander a respeito da mostra, que teve autorização para captar R$ 800 mil pela Lei Rouanet. “O fato de ser o centro cultural de um banco, e não uma instituição pública, influenciou o cancelamento da mostra, sim, mas não foi o único motivo nem deve ser tomado como justificativa. É preciso lembrar que a Lei Rouanet é dinheiro público. A balança não pode pender para o capital privado dessa maneira e esse, inclusive, é um mal da lei. Se vive nessa corda bamba entre o público e o privado, mas, inclusive por ser dinheiro público, é mais inaceitável ainda a tomada de posição do Santander”.

Três casos controversos

NAN GOLDIN

Um episódio semelhante ao do Santander Cultural já havia acontecido no fim de 2011 no centro cultural Oi Futuro do Rio de Janeiro. A fotógrafa americana Nan Goldin, reconhecida como uma das mais influentes do mundo, teve uma exposição cancelada antes mesmo da abertura por apresentar uma série, Ballad of sexual dependency, com forte conteúdo sexual. Em algumas imagens, crianças apareciam ao lado dos pais, que estavam sem roupa. A mostra foi acolhida pelo Museu de Arte Moderna do Rio (MAM), onde foi aberta em fevereiro de 2012, sendo um sucesso de público.

CÍCERO DIAS
Nas primeiras décadas do século 20, o pintor pernambucano Cícero Dias se envolveu em uma controvérsia referente a uma de suas obras mais famosas, o painel Eu vi o mundo…ele começava no Recife, hoje pertencente ao colecionador particular Luís Antônio Almeida Braga. Exibido em 1931, no Salão Revolucionário da Escola Nacional de Belas Artes, o trabalho foi envolvido em tal polêmica pelas imagens sensuais que uma parte dele foi arrancada. Ainda hoje há controvérsias sobre quem teria feito isso, se algum espectador escandalizado ou o próprio artista.

RODRIGO BRAGA
Em 2004, o 45° Salão de Artes Plásticas de Pernambuco ganhou atenção inesperada a partir das reações à série de fotografias Fantasia de compensação, do artista visual Rodrigo Braga. O artista usou partes da cabeça de um rottweiler morto, as uniu a um molde de gesso e silicone do próprio rosto e, posteriormente, manipulou digitalmente as imagens, dando a impressão de ser um híbrido entre homem e cachorro. A obra, que abordava os limites entre realidade e ficção, levou o artista até a ser ameaçado por supostos maus-tratos ao animal, prática negada por Rodrigo.