Crônicas afiadas de Lima Barreto Textos de autoria do romancista reunidos em livro fazem retrato do Rio de Janeiro e revelam opinião ácida e até preconceitos do escritor consagrado

Publicação: 03/01/2018 03:00

Romancista e contista, Lima Barreto foi também um excelente cronista que registrou com impressionante riqueza de detalhes a vida de sua cidade - São Sebastião do Rio de Janeiro - no começo do século passado. Quem já leu textos jornalísticos de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) sabe que ele não gostava de futebol, odiava o carnaval e não tinha muita consideração pela inteligência feminina. Quem ler agora a belíssima edição de Lima Barreto: cronista do Rio (Editora Autêntica, Biblioteca Nacional) vai encontrar tudo isso, mas terá também muitos artigos excepcionais sobre aspectos que não foram registrados por outros escritores que viveram naquela cidade e naquele tempo.

Negro, alcoólatra, funcionário público que ocupava um cargo irrelevante, morador do subúrbio e caminhante compulsivo, ele registrou com agudeza e cumplicidade o cotidiano das pessoas desimportantes que moravam nos bairros periféricos. Descreveu festas e bailes, feiras e mafuás, enterros. Mostrou a movimentação dessa gente na segunda classe de trens apinhados. Em suma, descreveu a batalha diária dos pobres pelo pão.

Aliás, nada muito diferente do que é hoje. “No corredor central, entre duas fileiras de bancos de madeira, muita gente de pé. As plataformas eram compactas muralhas de corpos humanos. O dia estava fresco, mas lá dentro era um forno”, registra Lima Barreto em Na segunda classe. Em A estação, uma das melhores entre as 50 reunidas, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma demonstra como, ao longo do tempo, alguns bairros do Rio de Janeiro - Méier e Cascadura, por exemplo - se formaram em torno de um terminal ferroviário.

O Estrela, reminiscências do menino Afonso a respeito da Revolta da Esquadra, em 1893, e Tenho esperança que..., em que lista os professores que foram centrais na sua formação intelectual, são outros dois trabalhos excepcionais.

Ao lado da paixão pela paisagem das margens da cidade, que descreve sempre com carinho, o autor não perde oportunidade de mostrar seu mau humor para com tudo aquilo que hoje chamaríamos elitista. “Quando, meu Deus, ficaremos livres da burguesia?”, pergunta em O jardim botânico e suas palmeiras.

Crítico ferrenho das obras de modernização da cidade - abertura de grandes avenidas após a destruição do labirinto de ruelas do Rio antigo -, denuncia que “esse furor demolidor vem dos forasteiros, dos adventícios, que querem um Rio-Paris barato ou mesmo Buenos Aires de tostão”.

Ataca os recentemente construídos Teatro Nacional e Biblioteca Nacional. “A minha alma é de bandido tímido, quando vejo desses monumentos, olho-os, talvez, um pouco, como um burro; mas por cima de tudo como uma pessoa que se estarrece de admiração diante de suntuosidades desnecessárias”.

Sugere que a construção de várias pequenas casas de espetáculos em bairros centrais teria sido mais sensata porque - julga - não há público na cidade para manter um teatro “cheio de mármores, de complicações luxuosas... que exige casaca, altas toilettes, decotes, penteados, diademas, adereços”. Protesta, em O prefeito e o povo, contra o fato de que o governo local esteja asfaltando “os areais desertos de Copacabana”.

Lima Barreto: Cronista do Rio traz fotografias, captadas nos primeiros anos do século 20 por Marc Ferrez e Augusto Malta, que mostram uma “cidade, desde sempre, de desigualdades, onde prazer e sofrimento pareciam partilhar tantas vezes o mesmo espaço. Cidade sedutora e injusta. Cidade de que é tão difícil se afastar e onde é tão difícil viver”, como registra a organizadora Beatriz Resende no prefácio. (Lourenço Cazarré)
 
Alvos de críticas
 
Carnaval

Sobre as marchinhas da festa - que considera “a festa mais estúpida do Brasil” - diz que “são o supra-sumo da mais profunda miséria mental”.

E anota em O pré-carnaval: “Os ranchos, os blocos, os grupos e os cordões saem de suas furnas e vêm para o centro da cidade estertorar cousas infames”.

Futebol
Lima Barreto lamenta que os brasileiros estejam apaixonados por “umas marradas e uns pontapés dominicais, debaixo de um sol ardente” e antecipa (em um século!) o Fifagate ao dizer ironicamente que “os clubes de football são de uma pobreza franciscana, tanto assim que uns compram vitórias a peso de ouro, peitando jogadores dos contrários a contos de réis e mais...”

Mulheres
Em A polianteia dos burocratas, sobra para as senhoras, às quais destila veneno e machismo: “Ninguém nega que a mulher tenha as qualidades subalternas e secundárias que são exigidas para o exercício de um simples cargo público”.

Itamarati
A pancadaria mais pesada, no entanto, fica para o barão do Rio Branco, na crônica intitulada A corte do Itamarati. “Porque ele não ‘nomeava’, não ‘provia’, dava empregos. Devagar, mansamente, o notável diplomata brasileiro pôs-se acima da lei, em tudo e no que tocava a empregos. Começou a residir na própria secretaria e, abuso manifesto e exceção singular, quando os outros seus colegas moravam em suas casas particulares. Não contente com pouca comodidade, quando sentia muito calor, mudava-se para Petrópolis, levando uma boa parte da secretaria, cujos funcionários seguiam-no, tendo grossas gratificações.”
 
Serviço

Lima Barreto, cronista do Rio
Lima Barreto/Ed. Autêntica
240 páginas/Preço: R$ 38