Uma mulher forte e libertária
Há 130 anos, nascia Cora Coralina, "a pessoa mais famosa de Goiás" segundo Carlos Drummond de Andrade, e um símbolo da literatura e da luta feminina
Publicação: 20/08/2019 03:00
Na entrada do apartamento do bairro do Paraíso, em São Paulo, sobre a estante, vemos fotos da família de dona Vicência Brêtas Tahan, de 90 anos. No meio desses retratos coloridos de filhos e netos, há uma foto em preto e branco que destoa um pouco - uma imagem muito bonita, e bem conhecida, de Cora Coralina (1889-1985). Acima, alguns objetos de decoração que pertenceram à poeta goiana. Na mesinha de centro, uma das panelas de barro que ela usava para cozinhar em seu lendário fogão a lenha virou vaso para uma renda portuguesa. E, no caminho para os quartos, uma galeria com fotos da escritora - a mais antiga, tirada por volta de 1910; a mais nova, de abril de 1985, feita dois dias antes de ela morrer em decorrência de uma pneumonia.
Cora Coralina, a pessoa mais famosa de Goiás - nas palavras de Carlos Drummond de Andrade na crônica que ele publicou no Jornal do Brasil em 1980 e que foi responsável por apresentar a poeta doceira para o grande público -, vai ganhar um ano só para ela. Hoje, quando serão festejados os 130 anos de seu nascimento, o governo de Goiás institui o Ano Cora Coralina, que prevê uma série de ações que devem envolver outras entidades culturais, universidades, escolas, museus e quem mais quiser participar. Saraus, oficinas, concursos de redação e literários, exposições e exibição de filmes são algumas das atividades. Filha mais nova de Cora Coralina e guardiã de seus escritos - e seus inéditos -, Vicência estará no evento de lançamento, na cidade histórica de Goiás Velho, onde Cora nasceu e morreu.
Vicência é possivelmente a fã número 1 de Cora Coralina, e guardiã de seus escritos. Única filha viva da poeta e doceira que estreou na literatura aos 75 anos, ficou conhecida do grande público aos 90, e cuja popularidade só aumenta com o passar dos anos, ela está animada com a proximidade das comemorações pelos 130 anos do nascimento da mãe. Antes de embarcar para lá, Vicência recebeu a reportagem em sua casa, e falou com carinho sobre as lembranças que guarda da mãe, as lições aprendidas, a saudade - e mostrou a estante dos inéditos. E essa é a notícia boa para os leitores de Cora: há material (poemas, contos, cartas e discursos), ela diz, para mais cinco ou seis livros.
Isso, sem contar os três que estão no prelo da Global. Dois deles - uma seleção de poemas para jovens e o infantil Lembranças de Aninha, com 12 textos já publicados - estão previstos para 2020. E um novo lote de inéditos chegou à editora, que está no processo de seleção.
Cora Coralina só publicou três livros em vida - Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965), Meu livro de cordel (1976) e Vintém de cobre - Meias confissões de Aninha (1983). Hoje, são encontrados 16 títulos nas livrarias, incluindo um livro de receita e oito para crianças.
“Minha mãe começou a escrever muito cedo, aos 14 anos, mas naquele tempo ninguém dava valor à escrita da mulher. E ela foi guardando, guardando. Depois, se casou e meu pai era daquela geração bem machista: não deixava ela mostrar os poemas que escrevia, e ela continuou guardando. Até que, aos 75 anos, já viúva, com os filhos criados e casados, ela voltou a se interessar por publicar e conseguiu”, conta Vicência.
Tudo bem que, entre os 14 e os 75, a vida foi movimentada e cheia de mudanças e batalhas - e a escrita pode ter ficado em segundo plano enquanto, viúva, ela criava os filhos, vendia tecido, administrava uma pensão, cuidava da roça ou fazia doces. Mesmo assim - e também porque a volta definitiva à cidade natal em 1956 reavivou nela o desejo de escrever - há naquele apartamento do Paraíso cerca de 15 pastas azuis que guardam manuscritos e datiloscritos de Cora, nascida Anna Lins dos Guimarães Brêtas. Material que Vicência vem organizando desde que a mãe morreu, há 34 anos, e que ainda precisa de um olhar editorial e crítico.
Filha raspa de tacho, como ela brinca, Vivência, que perdeu o pai aos 3, acompanhou a mãe em suas últimas andanças pelo estado. De Jaboticabal para São Paulo, Penápolis e, por fim, Andradina. Sabe das vantagens de ser caçula - Cora tinha mais tempo e até lia para ela alguma coisa que estava escrevendo para algum jornal local. Mas histórias, mesmo, só os netos ganharam - e delas nasceram alguns de seus livros infantis. “Não, não tinha isso de ela contar historinha. Ela estava trabalhando, cuidando da loja para sustentar a mim e a ela”, comenta.
Se Cora foi uma mãe carinhosa? “Médio”, responde Vicência. “No tempo dela, não era costume ficar acarinhando, abraçando filho, beijando. A gente tinha que tomar bênção para dormir e quando levantava. Não era de achego. Ela viveu o tempo dela e criou os filhos de acordo com esse tempo”, completa.
E a poeta dos versos simples que encanta tantos leitores foi uma mãe exigente. “Ela nunca aceitou que a gente ficasse em cima do muro. Com ela, era assim: ou você toma partido ou fica de boca fechada. E, quando tomar partido, fique firme até ser convencido a mudar de opinião. Mas ela nunca aceitou que alguém falasse ‘não sei’, ‘quem sabe’. A gente tinha que saber.” As principais lições ensinadas, além de não ficar em cima do muro, ela diz que foram saber quem somos e o que fazemos e sermos positivos.
SAUDADE
A saudade é grande: da conversa, do espírito, da comida, dos doces. Cuidar da obra de Cora diminui um pouco a distância entre a filha coruja, autora da biografia romanceada Cora coragem, Cora poesia, e a mãe famosa. “Sou filha coruja. A gente tem que valorizar o antepassado. E ela não foi uma mulher qualquer. Tinha muita personalidade e presença. Tenho muito orgulho e quero sempre parecer mais com ela nesse ponto”, finaliza. (Agência Estado)
Cora Coralina, a pessoa mais famosa de Goiás - nas palavras de Carlos Drummond de Andrade na crônica que ele publicou no Jornal do Brasil em 1980 e que foi responsável por apresentar a poeta doceira para o grande público -, vai ganhar um ano só para ela. Hoje, quando serão festejados os 130 anos de seu nascimento, o governo de Goiás institui o Ano Cora Coralina, que prevê uma série de ações que devem envolver outras entidades culturais, universidades, escolas, museus e quem mais quiser participar. Saraus, oficinas, concursos de redação e literários, exposições e exibição de filmes são algumas das atividades. Filha mais nova de Cora Coralina e guardiã de seus escritos - e seus inéditos -, Vicência estará no evento de lançamento, na cidade histórica de Goiás Velho, onde Cora nasceu e morreu.
Vicência é possivelmente a fã número 1 de Cora Coralina, e guardiã de seus escritos. Única filha viva da poeta e doceira que estreou na literatura aos 75 anos, ficou conhecida do grande público aos 90, e cuja popularidade só aumenta com o passar dos anos, ela está animada com a proximidade das comemorações pelos 130 anos do nascimento da mãe. Antes de embarcar para lá, Vicência recebeu a reportagem em sua casa, e falou com carinho sobre as lembranças que guarda da mãe, as lições aprendidas, a saudade - e mostrou a estante dos inéditos. E essa é a notícia boa para os leitores de Cora: há material (poemas, contos, cartas e discursos), ela diz, para mais cinco ou seis livros.
Isso, sem contar os três que estão no prelo da Global. Dois deles - uma seleção de poemas para jovens e o infantil Lembranças de Aninha, com 12 textos já publicados - estão previstos para 2020. E um novo lote de inéditos chegou à editora, que está no processo de seleção.
Cora Coralina só publicou três livros em vida - Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965), Meu livro de cordel (1976) e Vintém de cobre - Meias confissões de Aninha (1983). Hoje, são encontrados 16 títulos nas livrarias, incluindo um livro de receita e oito para crianças.
“Minha mãe começou a escrever muito cedo, aos 14 anos, mas naquele tempo ninguém dava valor à escrita da mulher. E ela foi guardando, guardando. Depois, se casou e meu pai era daquela geração bem machista: não deixava ela mostrar os poemas que escrevia, e ela continuou guardando. Até que, aos 75 anos, já viúva, com os filhos criados e casados, ela voltou a se interessar por publicar e conseguiu”, conta Vicência.
Tudo bem que, entre os 14 e os 75, a vida foi movimentada e cheia de mudanças e batalhas - e a escrita pode ter ficado em segundo plano enquanto, viúva, ela criava os filhos, vendia tecido, administrava uma pensão, cuidava da roça ou fazia doces. Mesmo assim - e também porque a volta definitiva à cidade natal em 1956 reavivou nela o desejo de escrever - há naquele apartamento do Paraíso cerca de 15 pastas azuis que guardam manuscritos e datiloscritos de Cora, nascida Anna Lins dos Guimarães Brêtas. Material que Vicência vem organizando desde que a mãe morreu, há 34 anos, e que ainda precisa de um olhar editorial e crítico.
Filha raspa de tacho, como ela brinca, Vivência, que perdeu o pai aos 3, acompanhou a mãe em suas últimas andanças pelo estado. De Jaboticabal para São Paulo, Penápolis e, por fim, Andradina. Sabe das vantagens de ser caçula - Cora tinha mais tempo e até lia para ela alguma coisa que estava escrevendo para algum jornal local. Mas histórias, mesmo, só os netos ganharam - e delas nasceram alguns de seus livros infantis. “Não, não tinha isso de ela contar historinha. Ela estava trabalhando, cuidando da loja para sustentar a mim e a ela”, comenta.
Se Cora foi uma mãe carinhosa? “Médio”, responde Vicência. “No tempo dela, não era costume ficar acarinhando, abraçando filho, beijando. A gente tinha que tomar bênção para dormir e quando levantava. Não era de achego. Ela viveu o tempo dela e criou os filhos de acordo com esse tempo”, completa.
E a poeta dos versos simples que encanta tantos leitores foi uma mãe exigente. “Ela nunca aceitou que a gente ficasse em cima do muro. Com ela, era assim: ou você toma partido ou fica de boca fechada. E, quando tomar partido, fique firme até ser convencido a mudar de opinião. Mas ela nunca aceitou que alguém falasse ‘não sei’, ‘quem sabe’. A gente tinha que saber.” As principais lições ensinadas, além de não ficar em cima do muro, ela diz que foram saber quem somos e o que fazemos e sermos positivos.
SAUDADE
A saudade é grande: da conversa, do espírito, da comida, dos doces. Cuidar da obra de Cora diminui um pouco a distância entre a filha coruja, autora da biografia romanceada Cora coragem, Cora poesia, e a mãe famosa. “Sou filha coruja. A gente tem que valorizar o antepassado. E ela não foi uma mulher qualquer. Tinha muita personalidade e presença. Tenho muito orgulho e quero sempre parecer mais com ela nesse ponto”, finaliza. (Agência Estado)