A casa intelectual de Freyre Para celebrar os 120 anos de Gilberto Freyre, que seriam completados neste domingo, usamos nosso acervo para explorar o vínculo do Mestre de Apipucos com o jornal

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 14/03/2020 03:00

“Temos à vista um exemplar do belo discurso pronunciado pelo aplicado jovem Gilberto M. Freyre no Colégio Americano Batista, como orador da turma de bacharéis em Ciências e Letras de 1917. É uma peça muito recomendada pelos créditos intelectuais do talentoso jovem, a quem ficamos agradecidos pelo exemplar”. O trecho da seção Livros e Folhetos, publicada em 26 de fevereiro de 1918, marcou a primeira aparição de Gilberto Freyre no Diario de Pernambuco. Foi o começo de uma relação que durou quase 70 anos. Um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século 20 usou das páginas deste mesmo Diario como ferramenta para, inicialmente, testar as suas habilidades de escritor e, mais tarde, estimular a opinião pública com artigos e crônicas. O jornal também sempre acompanhou de perto todos os seus passos. Usamos o acervo para explorar o vínculo do Diario com o Mestre de Apipucos, que completaria 120 anos neste domingo.

“Escrevo de Louisville. É uma cidade antiga. Os kentuckianos gostam de chamá-la ‘our good old city’. Ao mesmo tempo é um empório industrial onde fumegam os bueiros de não sei quantas fábricas”, escreveu Freyre, aos 18 anos, em seu primeiro texto para o Diario, datado de 3 de novembro de 1918. Era o começo da série Da outra América, composta por crônicas que refletiam sobre seu cotidiano nos EUA enquanto cursava bacharelado na Universidade de Baylor, no Texas, seguido pelo mestrado na Universidade de Columbia, em Nova York. A aproximação com o jornal provavelmente foi mediada pelo pai Alfredo Freyre, juiz e professor da Faculdade de Direito que já publicava editais desde 1902. “Recebo ocasionalmente do Brasil, de parte de amigos, latas de doces, livros e o Diario de Pernambuco. Eles formam o meu broquel contra as forças sutis que tendem a me desnacionalizar”, registrou Gilberto em crônica de 1921.

Nas vésperas do retorno para o Brasil, o jornalista Aníbal Fernandes, que ingressou no Diario para comentar a Primeira Guerra, assina em outubro de 1923 um texto cheio de elogios ao estudante. “Esse escritor, um dos mais jovens dos que escrevem para a imprensa deste país, adquiriu um estilo impressionista, cheio de trouvailles [achados] deliciosos, com horror ao lugar-comum e um senso de medida perfeito, como um discípulo de Nabuco”, descreve Aníbal, já demarcando traços importantes do estilo freyriano. Já no Recife, Gilberto continua com crônicas sobre assuntos variados: urbanismo, literatura, educação, história e até culinária brasileira, demonstrando um olhar diverso e especial para objetos tidos como menos importantes à sociologia da época.

Em 1925, quando foi comemorado o centenário do jornal, Freyre foi incumbido de organizar o Livro do Nordeste, que reuniu intelectuais da época como Euclydes Fonseca, Joaquim Cardozo, Mário Melo e José dos Anjos para pensar questões sociais, culturais e econômicas da região e de Pernambuco. “É um momento de conhecimento de significação continental”, escreveu, nas vésperas da comemoração. “Os quase 100 anos deste jornal mostram que as forças de cultura estão adquirindo consistência na América do Sul”. No final da década, Freyre deixa o veículo para ser secretário pessoal do recém-eleito governador Estácio Coimbra. “Este jovem pensador não tardaria a aferir atenção das elites culturais do país. Aos 25 anos, ostenta uma cultura opulenta e completa”, registrou o Diario, em 26 de outubro de 1926.

Quando sua carreira se mostrava tão meteórica, a Revolução de 1930 causou uma estagnação. O golpe de estado que levou Getúlio Vargas ao poder acertou em cheio o governo de Estácio Coimbra. Freyre foi exilado, passando pela África e países como Portugal, Inglaterra e EUA. Seu nome some das páginas do Diario. Em contrapartida, o escritor usou do intervalo para construir sua obra máxima: Casa-grande & senzala, que causou alvoroço no meio intelectual e ganhou projeção internacional por propor uma sociologia ancorada em percepções de vivências e no cotidiano, enxergando a miscigenação como positiva. “Além do aspecto científico, o que distingue o livro é a qualidade literária do texto dele, que foi sendo aprimorada nos primeiros textos no Diario. Ele escrevia de forma coloquial, com português vivo e muito pessoal, sendo dificilmente imitável”, diz o pesquisador Mário Hélio Gomes.

Gilberto só volta a ser citado no Diario em novembro de 1934, quando o jornal passa a integrar o grupo Diários Associados, do influente Assis Chateaubriand. “À frente da sua nova direção, eleitos por legítimos acionistas, se encontram Ismael Ribeiro e Gilberto Freyre, uma figura de projeção no cenário cultural do país”, destaca o jornal. O escritor foi diretor durante um período de adaptação do novo grupo. “Ao sair, não perde o seu contato com uma folha a que está intimamente ligado, de que foi durante muito tempo um de seus colaborasse mais ilustres”, publica o Diario no egresso.

A partir daí, Freyre aparece menos como colaborador e mais como personagem, principalmente em conferências, viagens, furos sobre novos lançamentos ou denúncias do autoritarismo de Vargas, como fez em relação à Lei de Segurança Nacional (LSN), em 5 de fevereiro de 1935. “Simplesmente sou ameaçado pela minha independência intelectual. Creio que nenhum intelectual, artista ou estudante pode ficar indiferente ao movimento atual de remoção da lei que ameaça a todos”. Após 15 dias, a notícia Ecos do movimento paredista no Recife relata: “A polícia deteve o escritor Gilberto Freyre e os pintores Cícero Dias e Di Cavacalti para prestar depoimentos à ordem social”. Era mais um episódio de uma série de relações paradoxais com o autoritarismo.