Um papel decisivo no rumo político e social do Brasil "O pensamento de Gilberto é completamente antifascista", defende especialista em sua obra, apesar de controvérsias sobre regime militar

Emannuel Bento
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 14/03/2020 03:00

Uma multidão reunida na Praça da Independência aguardava o discurso do já renomado Gilberto Freyre, posicionado na sacada do primeiro andar do antigo prédio do Diario de Pernambuco. Um estudante ao lado do escritor caiu da varanda, estendido em volta de uma poça de sangue. Na sua cabeça, uma bala disparada pela política do governador Etelvino Lins, ligado ao Estado Novo. O assassinato de Demócrito Souza Filho entrou para a história nacional e marcou a fase mais combativa da trajetória de Freyre, que na ocasião iria defender a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e criticar a ditadura de Vargas. “O Recife assistiu ontem a uma das cenas mais tristes e vergonhosas de nossa vida política”, registrou o Diario em editorial no dia seguinte.

“A bala da polícia poderia ter sido para Gilberto, que fazia parte de um grupo muito combativo”, avalia o professor e crítico literário Anco Márcio Tenório, especialista na obra do sociólogo. Três anos antes, Freyre denunciou num jornal do Rio de Janeiro “atividades nazistas e racistas” praticadas por um padre alemão de Olinda, sob confidência do governo estadual. Após repercussão no Recife, foi preso e espancado, junto a seu pai. Nessa fase, Freyre inspirou o movimento estudantil pelo aspecto progressista de Casa-grande & senzala, além dos elogiados Sobrados e mucambos (1936), Açúcar (1939) e Ingleses (1942).

“O pensamento de Gilberto é completamente antifascista. Tanto é que grupos fascistoides vão propor que todas as edições de Casa-grande & senzala sejam queimadas em uma fogueira. Houve quem propôs que ele fosse amarrado e colocado nessa mesma fogueira”, diz Anco. Com a redemocratização em vista, Freyre se filia à União Democrática Nacional. A decisão foi registrada no artigo Definição de atitude, de 28 de julho de 1945: “Não hesito em estar do lado de políticos de tendências nitidamente diversas da minha, mas os quais me ligam o sentimento comum de repúdio à Ditadura Vargas”. Em 1946, é eleito deputado federal por Pernambuco. Na década de 1950, seus artigos são publicados aos domingos, muitos relatando o cotidiano legislativo no Rio, então capital federal.

Na década de 1960, a imprensa compra a narrativa de que uma revolução comunista está sendo articulada por João Goulart. Freyre, já idoso, entra em consonância inflamada. Seus textos dominicais registram um momento controverso de sua biografia, fazendo com que parte da esquerda o tache como “reacionário” até os dias atuais. No primeiro artigo pós- -golpe de 1964, intitulado Forças Armadas: Uma força suprapartidária na vida pública brasileira, ele sugere que o exército foi necessário em um momento “de agudo desajustamento internacional e para sobrepor aos interesses facciosos”.

Ainda mais polêmico é O caso da universidade do Recife, no qual o escritor ataca o reitor João Alfredo da Costa Lima, sugerindo que seja deposto pelos militares. “Culminaram gritantes propagandas de caráter comunista da Rádio Universitária, de ideias e ideais antibrasileiros; em iniciativas nada universitárias ligadas à chamada ‘extensão universitária’ e à ‘campanha de alfabetização’, está com objetivos ideológicos”, diz, também criticando projeto de Paulo Freire.

Maria Lúcia Garcia Pallares é autora de Um vitoriano dos trópicos (Unesp, 2005), livro que apresentou narrativa inovadora dos elementos formadores do pensamento freyriano. Ela argumenta que Freyre sempre foi favorável ao exército. “Ele recebeu a revolução de 1964 como uma busca de ‘soluções brasileiras para problemas brasileiros’. Podemos dizer que seu ‘brasileirismo’ ficará descontrolado nos anos 1960, e que sua preocupação com ideias e intrusões estrangeiras, que, segundo ele, poderiam ‘desbrasileirar’ o país, havia feito dele um nacionalista agressivo. É bom lembrar que a atuação dos militares àquela época não dava ideia do que eles fariam após a tomada do poder”.

É possível encontrar críticas de Freyre ao regime militar já em 1970, no célebre artigo Clamando pelo Recife, de julho de 1970. “A desgraça que acaba de atingir de modo tão terrível a desprezada cidade do Recife, capital do abandonado Estado de Pernambuco e metrópole regional do agora apenas retoricamente lembrado Nordeste, é uma advertência a todos os responsáveis políticos pelos destinos nacionais do Brasil. (...) Não é possível que essas necessidades deixem de ser atendidas como merecem.”

Gilberto nunca parou de escrever para o Diario, tendo textos replicados em todos os veículos dos Diários Associados. Na década de 1980, dividiu espaço com intelectuais como Mauro Motta, Ariano Suassuna, Afrânio Coutinho e José Rafael de Menezes. Nessa época, os artigos já tinham um forte aspecto saudosista. “Costumo dizer que o Diario de Pernambuco foi a casa intelectual de Gilberto Freyre. Todas as suas opiniões, reflexões e descobertas estão no jornal, onde escreveu até os seus últimos dias”, diz Anco Márcio.

A edição da morte de Freyre, de 19 de julho 1987, trouxe a manchete “Gilberto agora é eterno”. O último artigo de opinião foi publicado nesse dia, intitulado Lula Cardoso Ayres, artista plástico que havia falecido três semanas antes. Coincidentemente, era um texto sobre morte e perpetuidade intelectual: “Nenhum artista, nenhum poeta, nenhum pensador, ninguém a cuja obra se possa associar a ideia de criação ou de criatividade, é um só, do princípio ao fim de sua vida. Ao contrário: é múltiplo dentro do tempo através do qual se estende sua existência; e com a sua existência, sua experiência da qual em grande parte depende a obra que realiza.”

"(...) grupos fascistoides vão propor que todas as edições de Casa-grande & senzala sejam  queimadas em uma fogueira”
Anco Márcio Tenório, doutor em literatura brasileira

"Ele (Gilberto Freyre) recebeu a revolução de 1964 como uma busca de ‘soluções brasileiras para problemas brasileiros’”
Maria Lúcia Pallares, historiadora

Linha do tempo

15 de março de 1900
NASCE NO RECIFE, filho da família aristocrática do juiz Alfredo Freyre e Francisca de Mello Freyre.

1918
VAI ESTUDAR NA UNIVERSIDADE BAYLOR, NO TEXAS, onde se formou bacharel em artes liberais. Assina sua primeira crônica no Diario.

1925
ORGANIZA O LIVRO DO NORDESTE, para comemorar os 100 anos do Diario de Pernambuco.

1933
LANÇA A PRIMEIRA EDIÇÃO DE CASAGRANDE & SENZALA, livro que inovou o fazer sociológico no Brasil e no mundo.

1945
PRESENCIA O ASSASSINATO de Demócrito de Souza Filho e se filia à UDN.

1948
APROVADO NA CÂMARA E NO SENADO o projeto de criação do Instituto Joaquim Nabuco, atual Fundaj, inaugurado em 1950.

1963
RECEBE O PRÊMIO MACHADO DE ASSIS

1970
VENCE SEU PRIMEIRO PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA, como Personalidade Literária do Ano. Volta a ganhar em 1973 e 1980.

1971
RECEBE A EXCELENTÍSSIMA ORDEM DO IMPÉRIO BRITÂNICO.

1987
MORRE, VÍTIMA DE ISQUEMIA CEREBRAL, por infecção respiratória e insuficiência renal.