A grandeza de Peter Parker Homem-Aranha: Sem volta para casa é uma espécie de atestado consciente da grandeza de seu protagonista na formação cultural de milhões de pessoas por décadas a fio

Rostand Tiago
rostand.filho@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 18/12/2021 07:20

Mesmo sendo talvez o mais popular e cativante personagem da cultura pop por décadas, o Homem-Aranha vivido por Tom Holland no Universo Cinematográfico da Marvel fez sua primeira aparição em um longa de outro herói, fruto do milionário acordo entre a Disney e a Sony Pictures. Mesmo que conquistando a simpatia do público e protagonizando dois filmes solos, essa entrada é um pouco sintomática do que era o amigo da vizinhança em algum nível nesse contexto mercadológico: um personagem muito a serviço de uma empreitada maior do que sua própria trajetória, trazendo consigo seu apelo afetivo fruto de uma mitologia própria muito bem construída tanto nos quadrinhos, como, em especial, no cinema.

Contudo, essa própria mitologia tão rica e humana vem conscientemente neste novo filme, Homem-Aranha: Sem volta para casa, como que para ajustar essa rota e lembrar da grandeza de Peter Parker no imaginário global. O longa, dirigido mais uma vez por Jon Watts, era um filme que já estava completamente vendido a partir de poucas informações e rumores, visto a problemática ocupação predatória nas salas de cinemas do país, mas que consegue ir além disso e propor um novo e inventivo caminho a partir de sua própria iconografia.

Nesse sentido, a nostalgia, que poderia ser apenas uma muleta para provocar sentimentos fáceis, acaba tomando um caminho diferente, dando uma voz mais própria aos novos filmes desta versão do personagem e ao próprio, construindo um alicerce dramático mais denso e humano a partir desse confronto com seus próprios ícones narrativos e visuais construídos ao seu redor nas últimas duas décadas.

O filme retoma logo após os eventos do longa anterior, com a identidade secreta do herói revelada ao mundo, com o acréscimo de uma falsa acusação de assassinato e de ataque terrorista. Tal cenário traz consequências para a vida de todos ao seu redor e, tentando corrigir isso, ele recorre ao feiticeiro Doutor Estranho para fazer com que o mundo esqueça quem ele de fato é. Contudo, um erro na execução da magia acaba por trazer seres de outros universos ligados à história de outros Homens-Aranha, especificamente vilões presentes em outros filmes do personagem. Caberá a ele consertar isso, mas talvez não a partir do confronto com esses invasores.

Mais uma vez, Watts, um dos menos inventivos diretores do Universo Cinematográfico da Marvel, dirige o filme. O que poderia ser um prenúncio de uma direção básica e pragmática, mas decente, que permeia os outros dois longas, passando longe do apuro visual e de ação de um Sam Raimi, responsável por começar essa história lá em 2002. Porém, ele recebeu um prato de possibilidades que, mais uma vez, seria perfeito para um apelo básico à nostalgia, mas que ele consegue ir além disso, articulando elementos que passam pelos emblemáticos trabalhos de nomes como Willem Dafoe e Alfred Molina ao frenesi de eventos e reviravoltas, com um bom senso de ritmo e uma ação até menos burocrática e mais espetacular.

Claro que o perfume do apelo nostálgico e a força dos ícones ajudam muito nisso, hipnotizam. Mas desse mesmo balaio sai uma espécie de reconfiguração dramática da jornada de Peter Parker, que possibilita vermos um trabalho mais expressivo e denso de Tom Holland, que já perigava entrar em uma espécie de piloto automático ao dar vida ao Aranha. Ao mesmo tempo, também adiciona uma camada inédita de consequências e risco emocional para sua narrativa, conseguindo deslocá-la da servidão ao projeto maior de outros personagem e do próprio projeto mercadológico da Marvel/Disney como um todo, mesmo que não radicalmente.

No fim das contas, Homem-Aranha: Sem volta para casa é uma espécie de atestado consciente da grandeza de seu protagonista na formação cultural de milhões de pessoas por décadas a fio. Um jogo consciente - e mercadológico, claro - do poder sentimental e empático que as mitologias da cultura pop detém, capazes de encher salas de cinema (com apoio do imperialismo hollywoodiano) com fantasias e gritos, que talvez expressem um lugar seguro, excitante e doce que um combatente do crime que paga aluguel era capaz de nos levar com suas teias.