O vazio da masculinidade tóxica Selecionado para representar o Brasil por uma vaga no Oscar, longa Deserto Particular reafirma o baiano Aly Muritiba como um dos principais nomes do cinema nacional na atualidade

JOÃO RÊGO
joao.rego@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 04/12/2021 03:00

“Meu interesse é entender como os homens da minha geração, que cresceram e se modelaram sob a égide do patriarcado e do sexismo, expressam suas emoções”, antecipa o cineasta baiano Aly Muritiba. Com uma já consolidada carreira no meio cinematográfico nacional, seu nome entrou em evidência depois que Deserto Particular, seu último filme, foi selecionado para representar o Brasil na disputa por uma indicação ao prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2022.

A história, como ele mesmo ressaltou, é um mergulho na masculinidade tóxica que constrói (e aflige) os homens. O protagonista é Daniel, policial que tem problemas para se expressar – quase um representante máximo dessa estrutura. Sem spoilers, um erro acontece e Daniel vê sua carreira e honra em risco. É aí que o cerne principal da trama vem à tona. Sem nada a perder, o ex-policial parte em busca da pessoa com quem se relacionava através da internet. O elemento de suspense entra quando o amante desaparece, dada a repercussão e virulência dos acontecimentos que envolveram Daniel.

“O argumento original contando a história de um homem que se apaixona por uma mulher a quem conhece virtualmente é de Henrique dos Santos, co-roteirista do filme, que me chamou para junto com ele escrever essa história. No início era um filme de desencontros, mas depois foi se transformando em uma história de amor”, explica Aly. E não há definição melhor: Deserto Particular pode ser chamado de uma história de amor. O filme desconstrói a figura do “macho” através das potencialidades do drama. Uma estrutura romanesca e crítica ao mesmo tempo. Essa característica é uma tônica na carreira do diretor baiano, que entre suas experiências, também já trabalhou como carcereiro.

“Levei comigo, da penitenciária, um aprendizado que se revelaria essencial: a importância de ouvir as pessoas que nunca tiveram alguém que as escutasse”, conta.

“Gosto de falar sobre tipos que não conheço profundamente, em um exercício de empatia. Gosto de construir personagens com dilemas humanos: suas dores, amores e crenças. Deserto Particular é um filme de muito afeto, em que desertos se encontram. É uma história de amor que reúne opostos. Pode começar sendo um amor romântico, mas depois se desenvolve para outro tipo de amor”, continua.

A construção de Deserto Particular também deve muito aos seus dois protagonistas, vividos por Antônio Saboia (Daniel) e Pedro Fasanaro (Sara). Ambos entregam na gestualidade, mais do que nos diálogos, atuações primorosas. “Em 2018, fiz uma leitura pública deste roteiro e os amigos de Saboia estavam na plateia, que conversavam com ele sobre o papel. Ele [Antônio] então decidiu entrar em contato comigo por todos os meios, até que eu enviei o roteiro e ele o devolveu com uma bela análise do personagem. Marcamos uma conversa no Rio de Janeiro, tomamos um café e decidimos o papel. Foi incrível, ele trouxe muito de si mesmo para o personagem. Pedro Fasanaro, que interpreta Sara/Robson, foi um acontecimento e tanto. Estávamos procurando atores não binários em todo o país quando um amigo me falou sobre o Pedro. Ao ver o Instagram de Pedro, senti que havia encontrado a pessoa certa para interpretar aquele personagem. É o primeiro longa-metragem dele”, conta Aly.

Outro ponto importante a se falar é como o filme é também uma história de amor que depende das novas tecnologias. Se Ferrugem, longa dirigido por Aly, retratava o potencial tóxico das redes sociais, seu novo filme abraça as possibilidades afetivas. “A gente vive hoje com isso, eu estou dando entrevista neste momento via áudio de WhatsApp. Essa mediação pode ter abordagem, consequências e aspectos tanto positivos quanto negativos. No caso de Ferrugem eu falo desde uma perspectiva mais negativa, ao passe que em Deserto Particular eu mostro como isso pode ser ferramenta de afeto, ferramenta de amor”, raciocina o cineasta.

Premiado no Festival de Veneza, e recentemente o grande vencedor do Cine PE, com seis prêmios, incluindo o de Melhor Longa-Metragem, Deserto Particular está em cartaz no Cinema da Fundação. O longa segue no seu percurso pelo Brasil, depois de também ser exibido nos Estados Unidos, pré-requisito para chegar à seleção oficial do Oscar.