Peixes fora d'água Recife e Olinda são cenário de romance improvável entre francesa e brasileiro no filme 'Salamandra', adaptação de romance inspirado em caso real

André Guerra

Publicação: 27/06/2024 03:00

As fronteiras entre desejo, comunicação, culpa e choque cultural estão entre os temas abarcados por Salamandra, longa de estreia do cineasta pernambucano Alex Carvalho e que entra hoje em cartaz nos cinemas. Adaptado do romance francês homônimo escrito por Jean-Christophe Rufin (ainda sem tradução para o português), o filme trata de Catherine (Marina Foïs), mulher francesa de família abastada que vem passar um tempo no Recife, à beira-mar de Boa Viagem, com a irmã e o cunhado. Um dia, na praia, ela conhece o jovem Gil (Allan Souza Lima), que a convida para uma festa, na qual, rapidamente, os dois começam a se envolver – mesmo que não falem uma palavra sequer da língua um do outro.

Numa visita à capital pernambucana, o autor francês ficou sabendo de um caso verídico ocorrido na Bahia e utilizou a base para construir sua obra. Ambientando a trama no Recife, cidade que já conhecia bem melhor, Rufin desenvolveu as suas próprias ficcionalizações a partir dessa história que, na vida real, terminou em tragédia – e, de acordo com o prefácio do livro, chegou a ser utilizada pelo consulado da França como um alerta para as visitas ao Brasil.

Salamandra, o filme, faz proporcionalmente a mesma coisa: utiliza a premissa do romance francês para desenvolver suas próprias ideias e rejeita o lado mais brutal do texto original. A relação entre Catherine e Gil é, naturalmente, explorada menos pelos diálogos e mais pelos olhares e imagens dos corpos em atrito. O diretor oferece o mínimo possível de explicações verbais a respeito do passado dos personagens e se interessa pela construção alegórica dos corpos, do mar, dos sons de Olinda, dos silêncios eloquentes.

As questões raciais e históricas, bastante presentes no livro, enredam a espiral de paixão e desejo do roteiro de Salamandra, mas não propriamente se concretizam ou chegam em algum discurso objetivo. Alex Carvalho levanta mais conflitos do que propriamente os resolve e, à medida em que o enredo se aproxima minimamente do chocante desfecho que inspirou a ficção, ele também se torna gradualmente enigmático, carregado de elipses e até de flertes com o suspense de crime. Essas arestas tornam o saldo irregular, mas sempre fascinante de acompanhar, tanto pelos espaços deixados para livre interpretação como pela força imagética de ver essas duas pessoas tão diferentes entrando em uma forma de sintonia difícil de definir.

Em entrevista ao Viver, o diretor falou sobre as alterações que julgou essenciais com relação ao romance e explicou sobre a importância de colocar a sua própria visão, brasileira e pernambucana, em um material de perspectiva europeia.

“Eu tinha um certo embate com o ponto de vista francês dessa história que se passava na minha cidade. Os personagens brasileiros eram tratados de maneira um bocado caricata e eu sabia que era aí que eu ia sofrer na tentativa de trazer uma narrativa que fica navegando entre dois lugares – entre duas culturas, entre duas formas de pensar – para um diálogo sólido, com minha própria voz”, destacou Alex. “A interação dos dois atores, nesse processo, acabou sendo bem natural, porque eles de fato não falam a outra língua, então esse lado físico e corporal é muito presente. E eu fui o mais econômico que pude no texto, porque não queria aquela coisa manjada do gringo falando português com sotaque carregado. Queria expressar o que máximo possível pela movimentação deles em cena e jamais subestimar o público”, completou.

“Marina foi uma atriz muito parceira e contribuiu para o nosso jogo cênico. Não vi dificuldades por não falar francês e isso até ajudou demais para que eu ficasse atento à musicalidade, à troca, à respiração. Quando a gente não sabe a língua, tem de buscar outros artifícios que potencializam nosso trabalho. E a grande experiência que eu tive foi de aprender a ouvir mais do que o habitual. Acabei me divertindo muito dentro da proposta do trabalho”, afirmou Allan, que interpreta Gil.