Primavera com trovoadas Longa pernambucano "A Primavera", de Daniel Aragão e Sérgio Bivar, provoca reações polêmicas e discussões acaloradas na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes

André Guerra

Publicação: 30/01/2025 03:00

O Recife e os diferentes olhares sobre a cidade foram o grande acontecimento da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes ontem. Primeiro longa pernambucano exibido na Mostra Olhos Livres, parte da competição principal, o romance experimental A Primavera se provou um vespeiro maior do que o festival, a imprensa e os próprios realizadores poderiam mensurar. Dirigido por Daniel Aragão e Sérgio Bivar, o filme, majoritariamente gravado no Recife Antigo, foi exibido na noite da terça e, apesar de alguns aplausos entusiasmados no final da sessão, gerou também críticas duras e reações acaloradas - tanto em função da obra em si quanto pela trajetória controversa de um dos cineastas (Aragão).

Na trama, de caráter fluido e não raro psicodélico, um poeta (Luiz Aquino) se apaixona por uma garota de programa (Eduarda Rocha), que se transforma na sua musa inspiradora. Em mergulho de autodescoberta mobilizado ainda por uma figura misteriosa que passa a comprar suas poesias, o protagonista se emaranha numa sucessão de situações inusitadas no coração pulsante da capital pernambucana.

O roteiro foi desenvolvido há alguns anos por Sérgio Bivar, que convidou Daniel para codirigir, fazer a direção de fotografia e a montagem, e essa marca contaminou o longa para muito além da esfera fílmica. Aragão se tornou persona non grata no meio cinematográfico quando fotografou o polêmico documentário O Jardim das Aflições (2017), sobre Olavo de Carvalho, dirigido por Josias Teófilo.

A recepção em Tiradentes, evento de perfil progressista, expôs como essa imagem do diretor afetou intensamente a relação do público com a obra. Pouco preparados para o que estava por vir, os cineastas (e Daniel em particular) não conseguiram responder com clareza às provocações.

O filme utiliza uma lente grande-angular (descrita pela equipe como raríssima no Brasil) para registrar as ruas do Recife, o abandono da região central, as pessoas em vulnerabilidade e a relação da poesia com os corpos. As críticas feitas, porém, destacaram o verniz publicitário e fetichista da linguagem, ressaltando como o olhar impresso na tela em A Primavera reflete menos a cidade real e mais o ideal deturpado e exploratório de Daniel, que respondeu aos comentários de forma reativa.

Uma debatedora tomou a palavra e descreveu sua experiência incômoda com a maneira de o longa tratar corpos vulneráveis e disse ter deixado a sessão na metade, ao que ele interrompeu: “Não pode falar se não viu até o fim”. A plateia reagiu em uníssono: “Deixa ela falar!”.

Mais comedido e declaradamente surpreso com a animosidade, Sérgio Bivar defendeu que as pessoas tentassem desassociar a obra do artista. “Acho que o filme foi bem feito, ouvi diversos elogios à fotografia. É importante fazer um esforço para ver um filme pelo que ele é e ele não envolve só uma pessoa, mas uma equipe inteira”, rebateu.

Ao se justificar com relação à controversa participação em O Jardim das Aflições, Daniel esclareceu que, à época, entrou no projeto apenas como observador, pensando na riqueza que a experiência em si poderia trazer para o futuro. “Fui como câmera. Liguei o equipamento para observar aquela família e ver o que as pessoas pensavam e falavam. Foi aí que descobri que a galera é nazi mesmo, basicamente”, explicou. “Fui cortado, eliminado dos grupos, mas a vida continua. Não dá pra ficar chorando em cima do leite derramado”.

Próximo ao final do debate, a crítica Maria do Rosário Caetano ponderou as qualidades de A Primavera, mas reafirmou como os realizadores não souberam defendê-lo. “Eu me interessei profundamente pelo filme. Não gosto de seus outros trabalhos, mas, pela primeira vez, você me tem aqui como uma razoável aliada. Não souberam argumentar com palavras e perderam grandes chances de defender o filme com o que ele tem de bom. É difícil mesmo separar a obra do artista. Eu mesma entrei no cinema com imenso preconceito e o longa me sensibilizou, mas você, Daniel, perdeu tempo falando abobrinhas”, concluiu, sob risos e aplausos.