Raízes de fé e tradição No encerramento do ciclo natalino, Dia de Reis é celebrado por manifestações culturais que unem religiosidade e rituais nordestinos, como o Cavalo Marinho e o Pastoril

Allan Lopes

Publicação: 06/01/2025 03:00

Como cantava Tim Maia, hoje é o Dia de Santo Reis. A tradição cristã remonta à chegada dos Três Reis Magos – Melchior, Gaspar e Baltasar – com os presentes de ouro, incenso e mirra para o menino Jesus. No Brasil, além de representar o fim do ciclo natalino, a data também inicia a contagem regressiva para o carnaval. Porém, a celebração assume características únicas em cada canto do país. Em Pernambuco, por exemplo, ela é vivida intensamente por meio das tradições seculares, que mesclam fé e cultura popular. Com músicas, danças e rituais, manifestações como o Pastoril e o Cavalo Marinho deságuam na história de um povo e resistem ao tempo e à globalização.

Introduzido durante a colonização portuguesa, o folguedo de Reis se estabeleceu nas práticas do catolicismo popular e, sobretudo, nas relações familiares no Nordeste. “É durante as festividades religiosas, como a Folia de Reis, que o sagrado e o profano se reconciliam. Nesse momento, a rotina de trabalho e as responsabilidades domésticas são quebradas, e homens e mulheres que, no cotidiano, estariam focados na sobrevivência, ganham a liberdade de transcender, tanto no aspecto religioso quanto no artístico. É quando o povo cultua, representa e brinca que a cultura se faz viva”, afirma Estevam Machado, professor do Departamento de História da UFPE.

Embora a desmontagem das árvores de Natal e presépios seja uma prática comum para encerrar os festejos natalinos, Pernambuco tem suas próprias tradições para selar o momento. Um dos grandes momentos é a Queima da Lapinha, que encerra a programação natalina promovida pela Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e a Fundação de Cultura Cidade do Recife. O início da concentração será às 16h, na Rua Nova. De lá, o cortejo de pastoris segue até o Pátio de São Pedro, onde a Lapinha será queimada, espalhando as esperanças do Recife para o ano novo e também abrindo alas para o carnaval no calendário cultural da cidade. O evento vai reunir 14 pastoris, além de três orquestras, blocos líricos, grupos de dança e passistas.

Um desses pastoris é o Jardim da Alegria, cujo legado é sustentado desde 1999 pela Mestra Jandecira, ao lado da sua mãe Mestra Jaci e da Mestra Ruthe. Os ensaios para a Festa de Reis têm início em junho, logo após o São João, embora os preparativos comecem ainda antes. “Passamos praticamente o ano todo nos preparando, cuidando de tudo, inclusive a confecção de roupas novas”, relata . As apresentações do Jardim da Alegria são feitas com jovens da comunidade de Águas Compridas, em Olinda, muitos deles desempregados e sem condições financeiras para arcar com despesas. “Se o pastoril se apresenta, é graças ao nosso trabalho árduo. Enfrentamos inúmeros desafios para conseguir colocar o pastoril, bonito e vibrante, nas ruas”, ressalta Mestra Jandecira.

Outra tradição marcante no mesmo dia é o Encontro do Cavalo Marinho, criado pelo saudoso Mestre Salustiano (1945-2008), ícone da cultura popular nordestina, e mantido pela sua família. Há 29 anos, vários brincadores e grupos de Bumba Meu Boi e Cavalo Marinho do estado se aglutinam no Centro Cultural Casa da Rabeca do Brasil, em Olinda. A edição deste ano contará, a partir das 18h, com a participação do Cavalo Marinho Boi Matuto do Mestre Salustiano, comandado pelos herdeiros da família, Cavalo Marinho Boi da Luz e importantes nomes como Mestre Grimário, Mestre Fabinho, Mestre Canarinho, Mestre Nego, Mestre Kaká da Rabeca, entre outros.

Pedro Salu, um dos filhos do mestre, ressalta a importância de conservar a memória do patriarca. “Para a família Salustiano, é uma grande responsabilidade manter essa tradição, preservando o legado dele. É um momento de renovar a esperança pela cultura popular tradicional, especialmente a cultura do Cavalo Marinho, que aprendi com meus antepassados e que continuo aprendendo até hoje. Ela alimenta a minha alma”.

O Cavalo Marinho é uma forma de teatro popular que se manifesta, principalmente, durante os ciclos do carnaval e do Natal, mas também marca presença em outras festividades culturais. A tradição remonta a influências das culturas africana, indígena e europeia, refletindo as complexas raízes que se entrelaçam na Zona da Mata Norte, um território marcado pelo ciclo canavieiro. Durante o evento, os brincantes, chamados de folgazões, prometem levantar poeira e remontar as antigas apresentações, quando as brincadeiras começavam à noite e seguiam até o amanhecer. “É uma festa tradicional, com raízes que fortalecem nossa cultura popular”,  diz Pedro Salu.