Desobediência e coragem
Em "Homem com H", filme que canta no timbre da transgressão de Ney Matogrosso, Jesuíta Barbosa faz jus à presença performática do cantor
André Guerra
Publicação: 30/04/2025 03:00
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Os pernambucanos Jesuíta Barbosa, no papel de Ney, e Hermila Guedes, como sua mãe, Beita |
Um garoto encara um paredão de mata fechada à sua frente, não com medo ou intimidação, mas um olhar de fascínio. É como se as cores e texturas da natureza provocassem nele uma identificação sonora e sensorial que somente muitos anos depois seria compreendida totalmente. Após ser encontrado pelo pai, ele é castigado violentamente, mas o enfrenta e se recusa a chorar quando é obrigado a fazê-lo. Coragem, resistência e irreverência: esse é Ney Matogrosso, desde criança.
Homem com H, cinebiografia que entra em cartaz nesta quinta no Recife, contextualiza a infância de um dos mais célebres artistas da música brasileira – marcada pela relação conturbada com o pai, o militar Antônio Matogrosso (vivido por Rômulo Braga) – para rapidamente trazer o pernambucano Jesuíta Barbosa ao papel principal na vida adulta, dando alma e corpo à trajetória transformadora do cantor mato-grossense.
Responsável por músicas que transcenderam gerações, como Sangue Latino, Balada do Louco e a própria Homem com H, Ney, hoje com 83 anos, foi parte fundamental no projeto, inclusive no trabalho de dublagem das cenas cantadas. Jesuíta, no entanto, empresta sua própria voz de maneira pontual (como se nota na emblemática Rosa de Hiroshima) e concentra a principal qualidade do longa, entre várias outras: a facilidade com que reproduz os trejeitos e o olhar tão reconhecíveis do artista sem virar uma grande caricatura.
Dividindo a cena com a também pernambucana Hermila Guedes (no papel de Beita, mãe de Ney), Caroline Abras (como Lara) e Bruno Montaleone (Marco de Maria), o ator principal incorpora os gestos voluptuosos e cheios de cotorsões de forma gradualmente mais natural dentro do filme, cujo roteiro atravessa as principais fases da sua carreira, desde a explosão da banda Secos & Molhados (com Jeff Lyrio interpretando Gerson Conrad e Mauro Soares como João Ricardo) até o seu relacionamento com Cazuza (estreia impressionante de Julio Reis no cinema).
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No processo, o filme não escapa de algumas outras armadilhas da cinebiografia contemporânea, a começar pela intercalação previsível de sexo e música ou o desenrolar abrupto de relações entre os personagens e coadjuvantes unidimensionais. A opressão representada pelo pai, vendida pelo filme como fator decisivo na personalidade irreverente e performática de Ney Matogrosso, é encarada do modo mais simples possível – e resolvida em uma chave bem mais convencional do que poderia.
É na sensorialidade com que retrata a música pulsando nas veias do personagem e na evocação da presença imponente de Ney através da belíssima caracterização, porém, que Homem com H se encontra plenamente e, assim, abraça também a plateia. E promove a celebração em vida de um artista que fez da provocação sua arte e, da arte, provocação.