A última carta de Rita Lee
Produção da Max mergulha na vida e no legado da rainha do rock brasileiro com arquivos raros, depoimentos afetivos e imagens inéditas da artista
Pedro Cunha
Especial para o Diario
Publicação: 12/05/2025 03:00
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Três semanas antes de morrer, Rita Lee escreveu uma carta de despedida para o marido e os filhos. O bilhete, guardado em segredo por quase um ano por Roberto de Carvalho, ressurge agora no documentário Rita Lee: Mania de Você, já disponível na plataforma Max. A produção marca os dois anos da partida da rainha do rock brasileiro, artista que se tornou sinônimo de liberdade, irreverência e transgressão na música nacional. Com cerca de 1h20 de duração, o longa é mais do que uma homenagem: é uma jornada sensível e tocante pela memória afetiva de uma das figuras mais icônicas da cultura brasileira.
Pensado inicialmente como um registro afetivo ainda em vida, o documentário foi se transformando em um tributo à medida que a saúde de Rita se deteriorava por causa de um câncer no pulmão. Gravado com o apoio da família, o material reúne trechos inéditos da rotina doméstica, vídeos antigos e entrevistas realizadas ao longo dos anos. O filme não segue uma cronologia linear, mas sim uma narrativa emocional guiada pela discografia solo da cantora, iniciada em 1973, que vai até o dia final de sua vida, em 8 de maio de 2023.
Dirigido por Guido Goldberg, com a participação ativa de João, Beto e Antonio — filhos da cantora com Roberto —, o documentário exibe imagens de bastidores, passeios em família, cenas de Rita na praia e registros íntimos que colocam o espectador dentro do lar da artista. Um dos momentos mais marcantes é justamente a leitura da carta deixada por Rita, feita pelos filhos diante das câmeras. O trecho é carregado de emoção e simboliza não apenas a despedida, mas também o laço indestrutível que une aquela família.
“Esses registros foram feitos nas últimas semanas de Rita entre nós. Foi dificílimo”, lembra Roberto de Carvalho em entrevista exclusiva ao Viver. “Estávamos profundamente abalados emocionalmente, mas com a disposição de ir em frente na homenagem. A Rita sabia que daríamos prosseguimento, mesmo a duras penas, e nos incentivava”.
O longa abre e fecha com a voz da própria Rita refletindo sobre a morte — “não é castigo, é voltar para casa”, diz ela. A produção, no entanto, evita o tom melancólico. Pelo contrário: aposta na ternura, na celebração e na coragem de viver. Rita surge como a ovelha negra da juventude, rebelde diante dos pais, mas também como a mãe amorosa, a artista visionária e a mulher que soube rir e provocar até o fim.
A obra também toca em episódios difíceis, como a prisão durante a ditadura militar, o uso de drogas e o envolvimento com a morte de um fã em um show. Documentos de censura oficiais ilustram o embate da cantora com o regime. Grávida de Beto, seu primeiro filho, à época da prisão, Rita dizia não ter usado substâncias ao longo da gestação. Sua detenção é apresentada como uma retaliação política.
A ausência dos Mutantes, banda que revelou Rita nos anos 1960, é notável. O documentário não inclui imagens ou músicas da formação original por falta de autorização de Sérgio Dias, guitarrista do grupo. Ainda assim, a lacuna não compromete a narrativa, já que o foco está em Rita e em sua construção artística autônoma.
Depoimentos de amigos próximos, como Ney Matogrosso, Gilberto Gil e o ex-jogador Walter Casagrande, ajudam a compor o mosaico de uma mulher que nunca deixou de ser ela mesma, mesmo quando isso custava caro. A produção também mostra com honestidade os atritos com integrantes da banda Tutti Frutti, mas sem sensacionalismo. O que prevalece é a afetividade. A mesma que transborda nos objetos, nas cartas e nas músicas. Rita segue presente.