O paradoxo de viver
Em uma narrativa íntima e contundente, Raimundo Carrero esmiuça, em "A Vida é Traição", um retrato universal das contradições
Allan Lopes
Publicação: 01/07/2025 03:00
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Em suas reflexões acerca da obra-prima O Santo e a Porca, Ariano Suassuna define a vida como uma “traição a Deus e aos que mais amamos”, já que a morte, ao extinguir qualquer sentido, nos confronta com o vazio. Seguindo essa mesma linha de pensamento, o escritor Raimundo Carrero, um dos expoentes da literatura pernambucana, explora o tema em seu novo trabalho, A Vida é Traição, cujo lançamento será realizado nesta quinta-feira, na Livraria Jaqueira do Bairro do Recife (Rua Madre de Deus, 110), que incluirá um bate-papo e sessão de autógrafos.
Em 80 páginas escritas ao longo de sete meses, Carrero conduz o leitor pela trajetória de Solano, um homem em ruínas, consumido pela culpa e pela tristeza, dividido entre desejos contraditórios. Desde menino, ele carrega o fardo de ter desejado a morte da mãe. Quando o pensamento se torna realidade, Solano é condenado ao abismo da culpa. No auge dessa queda, é espancado e acusado do assassinato.
A inspiração veio de uma ferida aberta na família Carrero. Quando seu filho Diego, atormentado por culpa infundada, achou-se responsável pela morte da mãe, Célia, o autor reviveu seu próprio trauma: aos dez anos, perdeu sua genitora, Maria Gomes de Sá, para a leucemia. “Será que eu matei minha mãe?”, reflete, em um flashback doloroso, durante a conversa com o Viver. A resposta veio rápida, enquanto contemplava a foto dela na estante de sua casa. “Jamais. Ali está ela, em paz”. Um alívio que seu personagem Solano nunca conheceria.
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Nesta quinta, o escritor lança novo romance na Livraria Jaqueira do Bairro do Recife |
Embora não seja estritamente autobiográfico, o livro pulsa com as experiências do autor. Seja nas reflexões existenciais que ecoam sua filosofia de vida, mas principalmente nas cenas extraídas da própria memória, como a morte da mãe de Solano, que agoniza durante meses em sua cama, cercada pela família impotente, exatamente como aconteceu com sua própria mãe. São episódios como esse que reforçam a premissa do livro: a vida é traição. “Quantos de nós realizou a vida que sonhou, plenamente?’, provoca o escritor. “O fato é que escolhemos essa vida. E ela é traiçoeira, sobretudo diante dessa coisa cruel chamada morte”, lamenta.
Não será a primeira vez que o autor de romances como Maçã Agreste (1989) e Somos Pedras que se Consomem (1995) dilacera o leitor com uma narrativa desconfortável. Mas, como em suas obras anteriores, a dor é apenas o caminho: o que fica é a recompensa de uma história que transforma angústia em arte. “O escritor tem esse péssimo hábito, o de querer entender o mundo. E, por isso, sofre mais. Mas não é algo de que eu reclame, não. Eu gosto. Sou meio masoquista. No fundo, é por isso que insisto em escrever”, admite o premiado pernambucano.
Segundo ele, A Vida é Traição abre as portas de um território que ele precisava explorar, por mais doloroso que fosse. “É um universo que eu precisava trazer à tona. Mesmo já conversando com meus leitores, que não são milhares, mas são muitos, havia coisas que eu ainda precisava dizer”, destaca. “Tem gente que diz que sou pouco lido. Eu não acredito nisso, não. Acho que sou lido demais. Mais do que mereço. Talvez até merecesse menos”, diz, sem perder o sarcasmo. Se Raimundo Carrero fosse mais lido, o Brasil poderia ser menos indiferente à dor. E a vida, menos traiçoeira.