CLAUDIONOR GERMANO // MúSICA TRADIçãO » O frevo é dele. A sorte e o orgulho são nossos Claudionor Germano completa 70 anos de carreira e é o maior intérprete do frevo no país, imortalizando sucessos de Nelson Ferreira e Capiba

Luce Pereira
luce.pereira@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 02/12/2017 03:00

“Sou um homem escolhido por Deus, um sujeito de muita sorte”. Quem diz isto, olhando para uma estrada que percorre há 85 anos, é o maior intérprete de frevo do Brasil, considerado das maiores vozes da época de ouro do rádio em Pernambuco e acostumado a incendiar foliões nos bailes de Momo – porém, curiosamente, sem jamais se sentir um deles. Claudionor Germano nunca foi de cair na folia, mas tem o ritmo tão misturado ao sangue que é como se cada nota das centenas de canções gravadas se juntassem para compor o próprio DNA, herança repassada aos filhos Paulo e Nonô, respectivamente o mais velho e o mais novo dos sete gerados ao longo de dois casamentos. O último, com Ana Lúcia, mantém há mais de meio século.

Durante breve e agradável conversa, o “menino”, assim chamado pelo maestro Nelson Ferreira, vai explicando as circunstâncias segundo as quais acredita ser sortudo: foi desde cedo abraçado pessoal e profissionalmente pelos maiores nomes do frevo em Pernambuco – o genial Nelson e o espetacular Capiba -, fez amigos sinceros na travessia pelo mundo da música, como o cantor/compositor Expedito Baracho, além dos dois mestres; bons parceiros de palco como Sivuca; passou com desenvoltura pelos cargos públicos que ocupou em secretarias de Cultura e como superintendente do Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães; construiu uma família da qual se orgulha (sete filhos, dez netos e onze bisnetos) e veio de outra onde reluzem nomes como o escultor Abelardo da Hora e o médico/escritor/professor Bianor Germano da Hora.

Mas se é verdade que a sorte sorri para quem se acha no lugar certo, no momento certo, ela tomou-se de simpatia pelo garoto Claudionor, que teve a carteira profissional assinada aos 15 anos pela PRA-8 Rádio Clube de Pernambuco, espécie de templo da música, e depois pela Rádio Jornal do Commercio, de F. Pessoa de Queiroz, tida, no passado, como um sonho por dez entre dez artistas da região. E tanto é verdade que o fator sorte pesava na mesma proporção da beleza e da potência da voz do intérprete que o destino achou de levar para outros voos profissionais no Rio de Janeiro o cantor/compositor Luiz Bandeira – nome dos mais respeitados do frevo -,deixando o caminho livre para o “menino”. Seria o substituto natural, porque já havia muitas portas abertas pela incorporação dele ao trabalho desenvolvido por Nelson e Capiba, em torno dos quais girava uma rivalidade folclórica. O próprio Claudionor diz ter visto, muitas vezes, os dois em conversas amistosas. “A imprensa tentava insinuar uma arenga, mas a rivalidade ficava só por conta da repercussão dos discos”, conta como se a cabeça voasse para os anos 1940/1950.

A sorte grande veio de fato em 1959 ao gravar O que eu fiz... e você gostou - Carnaval cantado de Nelson Ferreira e Capiba – 25 anos de frevo. Provavelmente tenha sido este um dos pontos mais altos da carreira do artista, que no auge do rádio lançava em um mesmo ano, alcançando sucesso retumbante, dois discos com letras e arranjos dos dois maiores nomes do ritmo no Nordeste. “Ninguém faz ideia de como aqueles trabalhos alcançaram os foliões, ainda mais porque, naquela época, as rádios tocavam frevo mesmo fora do período carnavalesco, então havia uma divulgação enorme; depois do réveillon, a ordem era já começar com as músicas”, diz. E diz como se lamentasse, nas entrelinhas, as dificuldades com as quais o gênero se depara hoje para sobreviver, embora já devidamente alçado à condição de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, título concedido pela Unesco em 2012.

Mas mesmo tendo gravado mais de 400 músicas (só de Capiba, 132) ao longo dos 70 anos de carreira, performance que lhe rendeu empregos e bons contratos, afirma terem sido os anos no serviço público que lhe permitiram ter tranquilidade financeira, agora complementada pela “bolsa” mensal vitalícia (menos de R$ 1.700) recebida pela conquista do título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, em 2016. Muitas medalhas, homenagens e títulos depois, ele admite ter dado sua parcela de contribuição à cultura, mas nunca esquece de dividir os méritos com quem mais o acolheu e apoiou. “Nelson e Capiba foram dois pais e dois mestres para mim. Quando eles morreram, senti um vazio imenso”. O assunto perdas dói em qualquer pessoa e não seria diferente com ele, que agora só tem a irmã Clarice. Era bastante ligado ao brincalhão escultor Abelardo da Hora, falecido em setembro de 2014, aos 90 anos, de quem chegou a vender peças em um tempo no qual os filhos eram muitos e a renda, pouca.

Homenageado do carnaval do Recife em 2007, honra dividida com o escritor Ariano Suassuna, teve a vida contada pelo jornalista José Teles em livro editado e lançado este ano pela Cepe. Lá está o Claudionor família e aquele que imortalizou frevos de Nelson Ferreira e de Capiba, mas com uma queda indiscutível pela música romântica cantada por gente como Moacir Franco e, antes mesmo, por estrelas de primeiríssima grandeza da MPB como Orlando Silva, de quem era fã declarado. Foi com este gênero que começou timidamente a carreira e é com ele que gostaria de terminar, gravando um CD com músicas que fizeram sucesso nos tempos áureos do rádio e da televisão, na voz de muitos astros e estrelas. Quem sabe. De qualquer forma, ele continua aceitando convites para cantar no carnaval oficial do Recife (deve se apresentar em 2018), mesmo ainda tendo a receber, da prefeitura e do governo do estado, pagamentos referentes a apresentações em 2013 e 2015.

Tranquilo, bem-humorado e se desculpando por estar sem o aparelho auditivo, que deu defeito, o Senhor Frevo (único artista a participar de todas as 52 edições do Baile Municipal) começou a conversa contando que havia ido, no dia anterior, ao acerto de marcha do Bloco da Saudade – do qual se diz torcedor fiel, como do Clube Náutico Capibaribe –, lá recebendo as costumeiras efusivas demonstrações de carinho. Riu-se a valer, lembrando do que lhe disse uma animada senhora: “Sua pele está ótima, já não se fazem homens como antigamente”. A brincadeira, espécie de senha para o tom da entrevista, não escondia as limitações físicas do artista, mas não deixava dúvida sobre o desejo dele de continuar tratando o tema com a leveza que ele exige. Se frevo é alegria, não cabem lamentações. Aliás, como alguém que se sabe orgulho de Pernambuco, ele olha para trás e declara, sem dívida nenhuma com passado ou futuro: “Não desejo mais nada – o carinho, o reconhecimento do povo e as conquistas já estão de bom tamanho”.